quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O elogio a Baptista Bastos







Conheci  Baptista Bastos, em pessoa, pouco antes do final do  milénio. O homem irrompeu sorridente e palavroso na redação da revista Época, ainda em montagem, algures nos arrabaldes de Lisboa. Não sei o nome da terra, lembro bem da forma como o  jornalista se apresentara ao jovem camarada. “Em Portugal só há dois comunistas: um sou eu, o outro é o Cunhal!” Fiquei assombrado com a farsa do mestre pouco inclusivo. Sem me conhecer de lado algum, afastava-me do restrito grupo português dos ‘herdeiros universais’. Encontro breve, a partir daí nunca mais vi Baptista Bastos – trabalhei apenas umas semanas na redação-Porto da Época, que encerraria meses depois. Anos mais tarde, encontro-o cronista nas páginas do Diário de Notícias, vindo no cardume liderado pelo não menos famoso (diziam-no “o Mourinho do jornalismo”) João Marcelino. Alguns anos volvidos, o cronista destemido foi “saneado”; Marcelino rescindiu amigavelmente, dezenas de jornalistas – em dois despedimentos coletivos num curto espaço de tempo – viram os postos de trabalho “extintos”. O saneado Baptista Bastos, ferido no orgulho de sobrevivente do jornalismo bom, despediu-se com um elogio a Marcelino. Um turibular  inaudito ao homem que o trouxe para o DN, sem uma única palavra aos camaradas despedidos (camaradas ou colegas, Baptista Bastos?)
Para ser sincero, o elogio de  Bastos a Marcelino não me causa qualquer perplexidade. Faz parte de natureza de certas pessoas que sabem pôr em prática o verbo turibular. Espantaram-me, sim, as palavras do Conselho de Redação do DN, na despedida, ao diretor que rescindia amigavelmente, após ter participado no segundo despedimento coletivo no jornal. E mais espantado fiquei com o Sindicato de Jornalistas que, durante o processo do despedimento coletivo, censurou um manifesto  pelo facto do documento “citar nomes” – um deles, João Marcelino – na explicação da crise que atingiu o grupo.
De Baptista Bastos entendo bem a mágoa de saneado. Um homem no meio do inverno tudo faz para sobreviver. Mas, bem vistas as coisas, O Correio da Manhã  parece o jornal certo para sua intrépida pena. É bom lembrar: Marcelino consubstanciou aí a fulgurante carreira.  
.  

manual de enxertia



o primeiro enxerto 
na romãzeira
colho a última maçã
vermelha e tentadora
como a da branca de neve
do araçá  caem  frutos maduros
grossas gotas rubras na relva
os tamarinhos ganham o fogo
no silêncio verde da folhagem

por motivo obscuro este ano 
os estorninhos desprezam a doçura 
dos dióspiros

árvore, 30  outubro de 2014

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

BILHETE PARA CESARE PAVESE,
  QUE NÃO CHEGOU A TEMPO


o ofício, eu sei, que não alisa
a face partida
o linho do beijo


a gente anda cá com os ombros a querer
lavar o peso casto
das pedras de cada sílaba

o que há de luz
na primeira vogal do lume
a consoante apaga

deixa-te ficar entre a lua e as fogueiras
que eu dou três toques no teu vidro,
antes que o galo cante

Emanuel Jorge Botelho

A Giz de Alfaiate,
Black Sun Editores, 2000

sábado, 25 de outubro de 2014

Tudo o que não posso ver



eu queria escrever
escrever para ti
uma palavra apenas
que fosse a fotografia
a preto e branco
de tudo o que não posso ver
sem os teus  olhos

estou perdido
num país miserável
feito de restos dos deuses
de deuses de pedra

(cairo, junho de 1992)

*

tenho a paisagem toda


tenho a paisagem toda
frente aos meus olhos
e  não sei se é verdade
as casas abandonadas
dizem-me que sim
que não é verdade
porque a morte também humilha
as pedras
a paisagem toda

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Estou vivo e escrevo sol

a Ruy Belo

Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol


Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida


Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

António Ramos Rosa

A Palavra e o Lugar
Publicações Dom Quixote, 1977

sábado, 11 de outubro de 2014

A casa



o abandono é movimento quase imóvel
e ao mesmo tempo voraz
redime e castiga
crescem as silvas ao redor da casa
como serpentes fogosas ao pressentir
a ausência de gente
da mão e do gesto
da mãe a chamar por mim da soleira da porta
do ladrar dos cães apontado ao escuro da noite

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Sabor de pássaros



esta noite viajo num cigarro
aceso de estrelas
atravesso montanhas aves tontas de frio
redescubro árvores adormecidas
na melancolia do bosque
solto os cães o cio dos cães
e procuro palavras tenras
no impenetrável matagal
o rosto encontra a limpidez
de antiquíssima água onde alguém
morreu procurando-se - mas é noite
só me emaranho no matagal da noite

*
acordo pelo fim da manhã
sabor de pássaros na boca
espreguiço-me na erva:
sobre a fragrância roubada
no bosque pelas abelhas
na mesa as garrafas que a noite deixou vazias
as cartas esquecidas para quem me amava
o relógio com a corda partida

mãe
ó mãe
dê-me uma laranja
sinto a boca amarga


rossas(?) 1984

Manhã

*
Na fresca da manhã
que arrepio suave!:
porque não vens, meu amor,
comigo ser ave?:

(Ser sonho, ser vento
e este pensamento
tão suave...)


Papiniano Carlos

As Florestas e os Ventos
livro apreendido pelo PIDE em 1953
que a Associação dos Jornalistas
e homens de Letras do Porto resgata
do silêncio em rigorosa edição
fac-similada, com texto explicativo
de Bruno Monteiro. A obra é apresentada
dia 13 de Outubro, pelas sete da tarde,
na sede da AJHLP.

sábado, 4 de outubro de 2014

A laranja



a manhã no silêncio dos choupos
à beira da água limpa
como uma noite leve de granito
qualquer dia a luz
será tão nossa que cegaremos os olhos
em farpas de cristal
antiquíssimo como o nosso desejo
o nosso desejo é uma laranja perdida
no rio de ternura violenta
quem me expulsou do paraíso branco
pintado de fresco
pintado de fresco porque é branco
azul é a anulação do preto
o sol é a anulação do azul
em áfrica há sol e azul
em separação de bens

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A noite e o corpo

a noite despe-se
pássaro morto de frio
estertor de corça
ferida pela lasca de sílex

suave aroma de urzes
calcorreia o teu cabelo
*


a noite, pasmo húmido
paixão inútil e obscura
música sedutora para
quem (não) gosta de estar só.


*

encho os pulmões de noite
debruçado na janela
voltada para o coração da cidade

neste momento escrevo essa sensação
um pouco fétida: avariou
o frigorífico do nosso lirismo

*

Porto,1984