sábado, 29 de dezembro de 2012

quando um pássaro vier

descerás ao anoitecer
talvez sob um ramo de lua
ou a serpente alada
do silêncio

observarás o fogo e as sombras
a brancura do medo
escurecendo

os primeiros olhos além da arena
a imobilidade o espectro a vertigem

tocarás a terra num volejo
entre metal e harpa
a terra
a terra tocarás

e quando um pássaro vier
cingir o sangue a rosa
ao tempo chamarás memória

em redor cristais apenas ervas
caligrafias de água


José Manuel Mendes

Cinzas de Véspera, ed. poucapena

sábado, 22 de dezembro de 2012

AOS QUE VIRÃO A NASCER



Em verdade, vivo em tempos escuros!

A palavra ingénua é louca. Uma testa lisa

Denota insensibilidade. O que ri

Ainda não recebeu

A terrível notícia.



Que tempos são estes, em que

Uma conversa sobre árvores é quase um crime,

Porque inclui um silêncio sobre tantos malefícios!

O que acolá calmamente cruza a rua,

Não será ele talvez já acessível aos amigos

Necessitados?



É verdade: ainda ganho o meu sustento.

Mas acreditai-me: é só um acaso. Nada

Daquilo que faço me dá o direito de comer e fartar.

Por acaso fui poupado. (Quando se me acabar a sorte

Estou perdido.)

Dizem-me: Come e bebe! Alegra-te, já que o tens!



Mas como posso eu comer e beber, quando

Tiro ao faminto o que como, e

O meu copo de água falta ao que morre de sede?

E no entanto como e bebo.



Também gostava de ser sábio.

Nos velhos livros vem o que é ser sábio:

Manter-se alheio à luta do mundo, e o curto tempo

Passá-lo sem receio.

Também viver sem violência

Pagar o mal com o bem

Não satisfazer os desejos, mas esquecer

Vale por sábio.

E tudo isto é que eu não posso:

Em verdade, vivo em tempos escuros!



Bertolt Brecht

in Poemas e Canções, versão portuguesa de Paulo Quintela

sábado, 15 de dezembro de 2012

ANIMAL AMOROSO E AUDAZ, A PALAVRA



Aqui estamos outra vez, cúmplices, como quem troca pequeninas flores dos montes. Contrabando silvestre que bem conhece. A alegria móvel da terra, como escreveu certa vez, e o movimento perpétuo da palavra facultam-nos o (re)encontro. Seu “ofício de palavra”, mesmo em aparente pousio, é memória sentida desse discreto movimento em demanda da alegria. Ou, talvez seja mais justo dizer, da felicidade escrita no plural. As palavras suas abrigam a frágil ternura da metáfora (“O pavão é uma galinha/em flor”) e, ao mesmo tempo, a grandeza, a força heroica de quem pedala com o passado a tiracolo rumo ao lado solar da vida.

A imaginária bicicleta, revolucionário veículo de combustão da luta de classes (hoje para muitos, ironia da história, instrumento de queimar calorias), atravessou arrojada, firme, a grande “noite de pedra”. O destino, foi dito, era o devir. O dia limpo e “à flor desse dia,/ a primeira respiração/ a primeira água da alegria”. Rude, perigosa, agreste viagem truncada pela prisão, pelo exílio – que é nome comum de cárcere e saudade. A palavra, porém, por perto. Sempre por perto, rente ao silêncio quando a brutal incomunicabilidade imposta tudo saqueava. Quase tudo. Animal amoroso e audaz, a palavra resistia: “Habitas em mim/ mesmo que dês outra morada”.

Nuvem negra, caro Luís Veiga Leitão, volta a estender mão fria por cima das nossas cabeças. A noite. A noite antiga e os seus novos feitores, céleres, começam a reerguer os muros, de pedra e indignidade, na alegria móvel da nossa terra. Mais do que nunca, as gerações que não vieram dos “cárceres da noite” precisam (re)descobrir o seu lirismo fraterno. E a bicicleta?

A bicicleta vamos precisar dela, “para que a beleza e a rebeldia/ não se percam”.

Francisco Duarte Mangas

[nota de abertura de A Bicicleta e Outros Poemas, de Luís Veiga Leitão, ed. Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto]

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O TERCEIRO CICLISTA



                         A Papiniano Carlos



Os ciclistas rompem exaustos

na bruma. homens de outro tempo

pedalam no subúrbio libertos do medo

urbano. há um que fuma devagar

enquanto pedala como se quisesse

adensar a bruma. outro traz relógio

no pulso e uma mola afasta as calças

do óleo da corrente. o terceiro ciclista

pedala pedala

pedala: mavioso movimento

na direcção talvez do devir

deixa a palavra na miséria do subúrbio

nas grandes alamedas

no largo de longínquas aldeias



O ciclista que traz o relógio no pulso

diz: “desperdício, companheiro.

vão pisar as palavras: virá a primavera

não botarão flor!” o terceiro ciclista

mantém o movimento o gesto de semeador

a viagem interminável viagem

na direcção talvez do futuro

sabe que o frágil coração da palavra

é inabalável

imperecível como a vida dos sonhadores.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O BANQUETE


Os bárbaros voltaram à cidade

Que temos para negociar?

Vêm negociar a alma,
senhor  presidente.

Qual  alma?

A nossa,  nossa  alma.

Manda preparar um banquete.

Para quem,
senhor presidente?

É preciso receber com dignidade os amigos
o que seria de nós sem os bárbaros?

Não temos mais nada para lhes dar

temos a alma, a nossa alma soberana!

sábado, 20 de outubro de 2012

O PÁSSARO DA CABEÇA



Sou o pássaro que canta
dentro da tua cabeça
que canta na tua garganta
canta onde lhe apeteça

Sou o pássaro que voa
dentro do teu coração
e do de qualquer pessoa
mesmo as que julgas que não

Sou o pássaro da imaginação
que voa até na prisão
e canta por tudo e por nada
mesmo com a boca fechada

E esta é a canção sem razão
que não serve para mais nada
senão para ser cantada
quando os amigos se vão

e ficas de novo sozinho
na solidão que começa
apenas com o passarinho
dentro da tua cabeça.

Manuel António Pina
O Pássaro da Cabeça, ed. A Regra do Jogo

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Da liberdade interior

Curvei-me


para beijar

as negras e bem polidas botas

do nosso amo

e então ele disse:

mais!



Curvando-me mais

senti

com prazer

a resistência

da minha coluna

que não queria estar dobrada



Feliz, verguei-me ainda mais

reconhecido ao nosso amo

por esta descoberta

da minha dignidade

e força

interiores



Erich Fried





segunda-feira, 24 de setembro de 2012

À ESPERA DOS BÁRBAROS


O que esperamos na ágora reunidos?

        É que os bárbaros chegam hoje.



Por que tanta apatia no senado?

Os senadores não legislam mais?


        É que os bárbaros chegam hoje.

        Que leis hão de fazer os senadores?

        Os bárbaros que chegam as farão.



Por que o imperador se ergueu tão cedo

e de coroa solene se assentou

em seu trono, à porta magna da cidade?



         É que os bárbaros chegam hoje.

        O nosso imperador conta saudar

         o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe

         um pergaminho no qual estão escritos

         muitos nomes e títulos.




Por que hoje os dois cônsules e os pretores

usam togas de púrpura, bordadas,

e pulseiras com grandes ametistas

e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?

Por que hoje empunham bastões tão preciosos,

de ouro e prata finamente cravejados?


         É que os bárbaros chegam hoje,

         tais coisas os deslumbram.



Por que não vêm os dignos oradores

derramar o seu verbo como sempre?


         É que os bárbaros chegam hoje

         e aborrecem arengas, eloquüências.



Por que subitamente esta inquietude?

(Que seriedade nas fisionomias!)

Por que tão rápido as ruas se esvaziam

e todos voltam para casa preocupados?


         Porque é já noite, os bárbaros não vêm

         e gente recém-chegada das fronteiras

         diz que não há mais bárbaros.



Sem bárbaros o que será de nós?

Ah! eles eram uma solução.



Konstantinos Kaváfis

trad. José Paulo Paes


Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982



terça-feira, 28 de agosto de 2012

A CASA


O homem só escuta a voz calma
de olhos semicerrados, como se uma respiração
lhe aflorasse o rosto, uma respiração amiga
que ressurge, incrível, do tempo passado.

O homem só escuta a voz antiga
que em tempos idos os seus pais ouviram, clara
e recolhida, uma voz que é como o verde
dos pauis e das colinas, que escurece com a tarde.

O homem só conhece uma voz de sombra,
cariciosa, que brota em tom calmo
de um manancial secreto: absorto, bebe-a
de olhos fechados, não parece estar junto a ela.

É a voz que um dia fez deter o pai
do seu pai e cada um dos antepassados.
Uma voz de mulher que soa secreta
junto da soleira da casa, ao cair do escuro.

Cesare Pavese
trad. Rui Caeiro
O Vício Absurdo, ed. & etc

sábado, 25 de agosto de 2012

Pedra maneirinha


arroteia-se o chão bravio


o tojo   raízes

fetos  urze outros arbustos

de teimosia à secura

se faz monte de palavras

mortas que o fogo ilumina.





cinza uma ou outra ponta

de raiz por arder

o ancinho junta esses focos de resistência

que a luta homem fogo terra

é muito antiga





de novo o fogo

serpe de fumo a desentender-se

no dia claro.



uma voz ao fundo

o homem suspende o gesto

livra os   bois   do jugo

transitória acalmia

na clareira cercada pelo bosque

e seu doce rumor de seiva.



a ocupação da paisagem

pela rebeldia domesticada do gado

à força de braços

alvião enxada ferro de monte

se amanha a pedra

amanhã rasga-se alicerce

as pedras acham abrigo

harmonioso afagar de cantaria

se abraçam entrelaçam

sobem devagar como árvore

de fruto: eis os socalcos

a embargar aluviões do devir



da cinza das palavras mortas

novo vocábulo desponta

a paisagem se  r e

p a r t e

e não é de todos: a posse excluiu

levanta sebes muros

paredes de pedra maneirinha



o mundo dos recolectores na rota dos frutos

viver silvestre entre penúria e bagas maduras

conchas marinhas

veado cativo na armadilha: essa humanidade

se mistura em restos de folhas

ossos  silêncio fragmentos de galeões

e se forma smatéria da aluvião



palavras mortas tojo
 
      raízes

arbustos

caroços de pessegueiro bravo

fogo

o fogo não tem memória.



francisco duarte mangas



Rossas, finais de julho




domingo, 19 de agosto de 2012

A mulher de Ba

As águas do rio Ba
        são flechas disparadas de um arco,
os barcos no rio Ba
        parecem voar.
Milhares de quilómetros distante,
        centenas de dias ausente
e quantos anos
         para o regresso aos meus braços?


Li Bai

Trad. António Graça de Abreu

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Pão e sal

Não construíste uma casa?
Eu sou a tua construção

E não plantaste árvore nenhuma?
Deita-te à minha sombra

Nem fizeste nenhum filho?
Toma-me nos teus braços

Deixa que eu seja o teu pão e sal da terra.


Ulla Hahn
versão de João Barrento

A Sede Entre Os Limites, ed. Relógio D'Água, 1992

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Medievo

Senhor meu amo, escutai-me,
a donzela espera por vós, no balcão.
Cuidai que não acorde os fâmulos
a paixão que estremece o vosso peito.
Os galgos estão inquietos, a alimária pateia.
Rogo-vos que vos apresseis.


Adélia Prado

Bagagem, ed. Guanabara

Amor Violeta

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge o meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.


Adélia Prado
Bagagem, ed. Guanabara

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Gato nocturno





à noite nos beirais

passeia-se a sereia

e a lua violada

sugere cada ideia



jogar à bisca entre os seios da donzela

implantar a anarquia

partir a trela

rasgar os cortinados

pular pela janela

ir cear anjos doces

com canela



josé martins garcia

Feldegato cantabile

ed. Paisagem, 1973

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Encontro

Da árvore vergada
chamei
pelo nome o peixe irado.
Tracei à volta da lua branca
uma figura, alada.
Veio-me o sonho caçador
que sonha cobrir a presa.

Castelos de nuvens sobre o rio,
é a minha voz,
luz de neve sobre as florestas,
é o meu cabelo.
Pelo céu sombrio
cheguei,
erva na boca, a minha sombra,
encostada à cerca de madeira, disse:
Leva-me de volta.

Johannes Bobrowski
Trad. João Barrento

Como um Respirar, ed. Cotovia, 1990

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Pavese outra vez

Em qualquer ofício ou profissão é possível viver segundo
o cliché desse ofício ou profissão, isto é, fingindo.
Mas o escritor ou artista não. Seríamos bohémiens,
cretinos insuportáveis. Porquê? Porque a arte e o
escrever não são ofícios, pelo menos na nossa época.

Cesare Pavese
in Ofício de Viver, Diário (1935-1950)
Portugália Editora 1968

quarta-feira, 27 de junho de 2012

4. POVO



Pequeno povo, luta sem espadas e sem balas
pelo pão, pela luz e pela canção de todo o mundo.


Guarda sob a língua os gemidos e os vivas
e quando se decide a cantá-los, até as pedras rebentam.


Giánnis Ritsos
Dezoito Dísticos para a Pátria Amargurada (1973)

In Antologia, trad. Custódio Magueijo
Ed. Fora do Texto, Coimbra 1993

quinta-feira, 31 de maio de 2012

AGUA DORMIDA

Quiero saltar al agua para caer al cielo.


Pablo Neruda

Crepusculario
Editorial Losada, Buenos Aires, 1961

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Cimeira ibérica

os grandes plátanos
sereníssimos
na alfândega do porto
rodeados de autoridade



tantos polícias
e as árvores não voam
nem escondem armas brancas
no meio da sua verdura

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A barca da alegria

o que há de vir
será a coisa mais linda

prepara a barca da alegria
vais precisar dela.

terça-feira, 17 de abril de 2012

A PALAVRA É UMA BELA CEREJEIRA

povoa-se a palavra
de pequenina flor branca.
a palavra é uma bela cerejeira
se a escrevo no mês de abril.

vêm as chuvas
esborratam a brancura
se transmuta em cereja
a palavra que fica rubra
quando maio a mão a escreve.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

FRAQUEZA PEQUENO-BURGUESA

Custa-me
sentir-me por vezes
sozinho
entre camaradas
mas claro
que isso não é
proibido


É verdade
que também conheço
camaradas
que gostariam de proibi-lo
Entres esses
sinto-me
sozinho


Erich Fried

in 100 Poemas sem Pátria

segunda-feira, 26 de março de 2012

O devaneio da escrita

um bando de gralhas sobre
a escrita
imoral como gavião que cativa
indefeso perdigoto.
que procura o bando: o coração ferido
da palavra ou agasalho nos ramos frios do inverno?
digo, traz a caçadeira
e cartuchos de chumbo 8: este espéce de gralha
maior não é que tordo de papo ruivo.
retomo o rito antigo de caça
pela luz da alva
dissimulado na brancura do papel
a velha espingarda de canos parelelos aperrada

mas o descuido do cão pisa a tinta fresca
espanta a espécie no devaneio da escrita
na primavera audaz cheia de devir.

terça-feira, 20 de março de 2012

Primavera

Quando te vejo pela manhã
até me apetece ser eterno.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Crónicas de Morfina Mendes

O Prof. Cavaco Silva, "provedor do povo", passa por dificuldades. A reforma é curta, sequer dá para as tesouras da poda. O Prof. Cavaco, um dos muitos reformados deste país forçados a trabalhar até ao fim, nos raros momentos de lazer poda as suas laranjeiras. E nessa arte, dizem-me, o "provedor do povo" demonstra habilidade. Este país, desde a sua longínqua génese afonsina, foi desenhado, conquistado, arroteado para os velhos. Reforma curta, nem chega para compor o avental, ou adquirir o apetrecho para a solidão digital, ou a embalagem de comprimidos que afugentam pesadelos. Noites frias, velhice fria, reforma fria como as mãos dos velhos. Ao povo português coube um "provedor" da penúria; depois de uma longa e árdua vida de trabalho, duas reformas, somadas, igual a miséria. Miséria, miséria. Este país, talvez pelo sabor a vinho do Porto, não é para os novos. A reforma breve. Talvez o Dr. Mário Soares, num dos seus gestos de travar o fim da (nossa) História, se candidate à presidência da JS. Talvez o Dr. Artur Santos Silva, num sublime acto de despojamento, abandone a Gulbenkian e se dedique a escrever a biografia de um tal Sebastião Ribeiro, jurista, defensor de antifascistas, republicano, expulso pela Ordem dos Advogados. Caído no olvido. Talvez o Prof. Eduardo Catroga, num gesto humilde, abdique da EDP e dos outros sítios onde administra e adicione sua reformita à reformita do “provedor do povo” e, seguindo o exemplo de Mofina (ou morfina) Mendes, criem o primeiro banco mundial para financiar os velhos que precisam de trabalhar quando chegam a velhos.
Um país com “o provedor do povo” na penúria, sem dinheiro nem saliva para comprar e colar os selos para as cartas de reposta às cartas que recebe do povo, da plebe, um país assim nem é sequer um “lugar mal frequentado”. É o vazio. É indignidade. É o nada – e “nada nos falta porque nada temos”.