quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Direi que não é de recear que de futuro cesse a profusão da palavra escrita, da palavra falada, da imagem, do som e do gesto. De recear é apenas que tudo isso se transforme uma torrente de entorpecimento, em vez de constituir um caudal de vida.
A informação adequada à civilização que se está a forjar não pode ser condicionada por aquele modelo publicitário cujo único sentido é actuar sobre os instintos ancestrais do homem, nomeadamente sobre o instinto erótico e sobre o instinto de destruição.
Informação adequada será a que contenha um apelo ao homem, mas não lhe retire a liberdade.

J. Ferreira Salgado
In Informação e Civilização
conferência realizada em 11 de Maio
de 1973

domingo, 13 de novembro de 2011

VIda boa a do exílio real no reino de Salazar

A morte rondava a rainha. A última rainha. Era uma questão de dias. Idade avançada, uma história cheia de lances trágicos, a doença a impedir-lhe ingestão “de qualquer alimento nas últimas semanas”. Os dois médicos que permanecem à cabeceira da doente, durante parte da madrugada, aguardam, de um momento para o outro, “o desenlace fatal”. Na sua casa de Versalhes, França, “às 9.35” morre a “Rainha D. Amélia de Portugal”.
No mesmo dia, 25 de Outubro de 1951, o Diário de Notícias, num suplemento especial, notícia a morte de Amélia de Orléans. E traça o perfil, com palavras de Eça de Queirós ao conde de Sabugosa, da “veneranda Senhora”. A presidência do Conselho decide: “Tendo falecido esta manhã em Versalhes Sua Majestade a Senhora D. Amélia de Orléans e Bragança, o Governo resolveu que durante três dias os edifícios públicos mantenham a bandeira a meia-haste e que o corpo seja oportunamente transferido para Lisboa”.
Oliveira Salazar, o presidente do Conselho - “monárquico na juventude”, ditador a vida toda - prestava homenagem a “Sua Majestade”, última rainha portuguesa. Anos antes, este homem “de olhos escuros, que sublinha por vezes as suas frases com um gesto com as suas pequenas mãos brancas de cura”, de repente, via-se rodeado de príncipes, reis sem coroa, membros das principais monarquias europeias. Com a Europa mergulhada na Guerra, a neutralidade de Portugal torna-se um lugar de exílio ou de passagem de milhares de refugiados. Entre eles, essa horda de sangue azul que repovoa os melhores hotéis e grandes moradias de Cascais, Estoril e Sintra. A última rainha, contudo, mesmo com os nazis alemães a ocupar parte do seu castelo de Bellevue, recusa convite do Governo português. D. Amélia de Orléans e Bragança abjura exílio no país que a teve como derradeira rainha de facto.
“Pequenas mãos brancas de cura” é imagem da autoria da condessa de Paris. Acompanha o marido, o conde, num encontro com António Oliveira Salazar no Forte de Santo António, perto do Estoril, onde o presidente do Conselho, a gozar uns dias de férias, oferece aos ilustres convidados “um chá num serviço simples, acompanhado de pequenos biscoitos simples”. Outros encontros manteve com príncipes e reis sem reino. A presença de alguma dessa gente afigura-se incómoda. Salazar controla-lhe os passos. Das movimentações do conde de Barcelona, D. Juan, que o general Francisco Franco gostaria de ver num exílio bem mais longínquo, o presidente do Conselho, todas as noites, recebe um relatório de João de Almeida Costa, agente da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado).
O agente Costa conquista a confiança de um dos empregados do pai do futuro rei de Espanha e, a partir daí, os seus olhos e os seus ouvidos entram discretamente na casa da família real no exílio. No dia 7 de Março de 1946, António Oliveira Salazar fica a saber da presença de um “vermelho” na casa do nobre, no Estoril. “Mantendo a confiança alcançada com o empregado do príncipe D. Juan, consigo estar ao corrente de certos factos que considero interessante comunicar: ontem, dia 7 do corrente, o príncipe D. Juan foi visitado por um indivíduo espanhol, que veio pela primeira vez. Tendo o empregado perguntado ao secretário Ramón Padilla de quem se tratava, foi-lhe respondido que era um vermelho”. O empregado mostra-se deveras tão perplexo como o Pide que o ouve. Salazar, de igual modo, chegado a esta parte do relatório, também ficará intrigado com a visita de um rojo! A fonte do agente Costa aprofunda a informação: “Estupefacto com a resposta, tratou, por todos os meios e subterfúgios, saber o nome desse indivíduo. O que não conseguiu. Acabou por o secretário Padilla lhe dizer que aquele “vermelho” não tivera qualquer actuação durante a Guerra Civil Espanhola, e que era menos perigoso que alguns monárquicos”.
O exílio da família real espanhola foi, a princípio, um assunto delicado para o ditador português. Pelo menos, é essa posição de Charles-Philippe D' Orléans, que acaba de publicar Reis no Exílio – Portugal Refúgio Real. É uma das dezenas de obras sobre reis, rainhas, infantas (piedosas ou rebeldes), que inundam o mercado livreiro português. Perante esta avalancha de escrita sobre a realeza, vai do romance passando pela biografia de todos os nossos reis, fica a dúvida: foi mesmo há cem anos que Portugal se tornou uma República?
Voltemos à velha senhora que, em Outubro de 1951, põe o Estado Novo, três dias, a meia-haste. D. Amélia, em 1945, após trinta e cinco anos de “ausência”, num “florido mês de Maio, de novo, e pela última vez, tornou a ver Lisboa”. Encontra-se com o homem das pequenas mãos brancas de cura. A última rainha não é ameaça ao seu poder. Vem a Portugal em “romagem de saudade”, não é o regresso do exílio. Ao contrário dos duques de Windsor, do deposto rei Carol da Roménia ou do rei Humberto e da rainha Maria José de Itália, que procuram Portugal como soalheiro abrigo real, Amélia Orléans despede-se “da segunda pátria que ama como a primeira, a sua terra de França”.

A visita
da última
rainha

A imprensa “turibulária”, como diria Paiva Couceiro, do Estado Novo dá grande destaque a essa visita real. A “veneranda Senhora”, muitos anos antes, era vista por Eça de Queirós como “o Lírio de França”, raro de enxertar. “Mas mergulhou tão profundamente a raiz no torrão português e tão gratamente absorveu a sua substância que hoje, na forma, na cor, no aromo, já se não diferença de qualquer fresca e genuína rosa de Portugal”.
Com idêntica impressão de D. Amélia fica o enviado especial do Diário de Notícias, a Inglaterra, por ocasião da inesperada morte de D. Manuel, seu filho, no ano de 1932. António Ferro admira-se ao ouvi-la exprimir-se “no mais correcto” português. “Como não havia de falar português, eu sou portuguesa, se fui Rainha de Portugal... É a língua que falo melhor, aquela onde me encontro, onde está o meu passado!”
Nessa conversa com António Ferro, a rainha no exílio recorda as “horas triunfais” do reinado do seu marido, o rei D. Carlos. E de grandes nomes de Portugal monárquico: como Paiva Couceiro, um dos protagonista da “admirável epopeia africana”, sublinha. Couceiro, refira-se, foi dos raros monárquicos a não se deixar absorver pelo Estado Novo, e a tomar posição clara de oposição ao regime de Salazar.
O homem das incursões monárquicas, nos primeiros anos da República, por certo, ficaria também admirado com a profusão de literatura sobre fidalguia, portuguesa e não só. Entre esses livros sobressai também um com o seu nome: Paiva Couceiro, grosso volume, organizado por Filipe Ribeiro de Meneses, que reúne o diário, correspondência e escritos dispersos. Nos documentos publicados há uma das cartas, datada de 1937, endereçada a Oliveira Salazar. A dado passo, o destemido Paiva Couceiro ousa diz o seguinte: “Sobre o escudo rígido duma vida inteira com uma só cara, os seus manejos resvalam para recair sobre a sua própria cabeça, com desprestígio da sua autoridade. A polícia, a censura e as mistificações da imprensa turibulária, são apoios precários, pode crer-me. E, se não arranja coisa melhor, arrisca-se a descer do Capitólio qualquer dia”.
Quando se casou, é D. Carlos o padrinho da boda. Combate a primeira República com todas as forças, e assim abre a porta do exílio. Quando se apercebe de que o caminho traçado pelo Estado Novo jamais terá o destino de uma “monarquia plebiscitária, anti-parlamentar e tradicionalista”, declara guerra ao poderoso presidente do Conselho. Salazar empurra-o uma vez mais para longe.
A “romagem de saudade” de D. Amélia ao seu antigo reino, no “florido Maio” de 1945, não retira o sono aos homens da ditadura. Os últimos passos da visita “a encaminharam para o panteão de S. Vicente a ajoelhar perante os feretros do seu marido e dos seus filhos”. Antes, tinha passado por Sintra, o Buçaco; foi a Fátima, à Cova da Iria. Em todas essas visitas, sublinha a imprensa , “sentiu bem quanto o povo lhe queria, não esquecendo dos benefícios que outrora com tão generosas mãos espalhava”.
Na despedia - e a história desta rainha marcada pelo desgosto termina aqui - D. Amélia de Orléans e Bragança dá uma recepção no hotel onde se hospedara: “compareceram mais de mil e quinhentas pessoas”. No próprio dia da partida, datados de Vilar Formoso, o Presidente da República, marechal Carmona, e o Presidente do Conselho recebem dois “expressivos telegramas” da última rainha de Portugal. O telegrama para o chefe do Governo, mais extenso, traz estas palavras: “No momento em que vou sair da querida terra portuguesa, eu desejo, senhor Presidente do Conselho, dizer-lhe mais uma vez quanto admirei a grande obra por V. Exª realizada e quanto isso foi grato ao meu coração de portuguesa. Peço, por isso, à Providência que o conserve à frente dos destinos do meu tão amado Portugal e continue a engrandecê-lo como até agora o tem sabido fazer”.

Salazar
nonárquico
na juventude

Na juventude, lembra o autor de Reis no Exílio, Salazar é monárquico. “Talvez mais por conveniência do que por convicção(...). Ele não acredita portanto forçosamente no sistema monárquico mas, seja como for, ele apresenta-se em Coimbra nos primeiros tempos de estudante, depois como professor de Finanças, como um monárquico. E, na realidade, até ao último momento, Salazar vai deixar planar a dúvida sobre o restabelecimento da monarquia”. O que não fez. Ele, o presidente do Conselho, ao contrário dos últimos reis, reina enquanto governa.
Orgulha-se de, com a sua política de neutralidade, durante a Segunda Guerra Mundial, juntar no seu país “a maior comunidade do mundo de altezas reais”, garante Charles-Philippe d' Orléans. “A fama destes exilados de luxo abre Portugal ao turismo”. Mas nem tudo foi assim tão simples. A presença do duque de Windsor (durante Janeiro a Dezembro de 1936 foi rei de Inglaterra com o nome de Eduardo VIII) traz dores de cabeça ao Governo português. Terá mesmo existido um plano dos alemães para o raptar em Lisboa. Mas a presença do do duque e da duquesa (Wallis Simpson) de Windsor é curta.
Dificuldade encontraria também a família real espanhola. D. Juan espera algum tempo até obter a autorização para ficar a viver em Portugal. O general Franco vê com maus olhos um exílio tão próximo. Em Lisboa, o embaixador espanhol, Nicolas Franco, irmão do ditador, move as suas influências. Mas “Salazar mede forças com Franco e não cede à pressão de Nicolas”. Três anos depois, talvez para apagar mal entendidos ou ressentimentos, “Lisboa, Capital do Império português recebe o generalíssimo Franco”. Os chefes de Estado de Espanha e de Portugal, escreve o DN de 22 de Outubro de 1949, “vão, dentro de horas, apertar as mãos, no mais cordial dos encontros. Consagra-se assim, num momento ainda de perturbação e incertezas para o mundo, a política de paz e lealdade que foi possível manter na Península através das mais graves e surpreendentes contingências da guerra”.
Enquanto Salazar e Franco, em “carinhosa e significativa recepção”, mostravam unidade entre as suas ditaduras, as famílias reais divertiam-se. O conde e a condessa de Barcelona compram, “por oito milhões de pesetas”, casa no Estoril. Juntam mais “três milhões de pesetas” para obras – e a casa, enfim, torna-se “num palacete majestoso”. D. Juan descobre o Clube de Golfe do Estoril. Quando não jogam, conta Charles-Philippe d' Orléans, “bebericam cocktails durante horas”. O preferido do conde é o dry martini, “mas deixa-se facilmente tentar por um whisky escocês duplo de puro malte”. A condessa, com as suas amigas, bebe o seu “gin tónico”. Ao almoço, no restaurante O Pescador, em Cascais, D. Juan e D. Maria “não dispensam o prazer de um bom peixe fresco e dos frutos do mar”. Vinho branco “bem fresco”, camarões como aperitivo, queijo português e “um pouco de presunto para se lembrarem do seu país”.
O rei Humberto II almoça, com frequência, na zona do Guincho, no Muchaxo. Nesse restaurante, “espécie de segunda casa da família italiana”, senta-se à mesa, em Julho de 1947, com Eva Perón, mulher do presidente argentino. Este almoço, segundo Charles-Philippe, “não é um mero encontro de cortesia”. Pelo meio terá surgido uma caixa de jóias, “avaliadas em 100 milhões de dólares”, que Eva Perón “terá depositado num banco de Lisboa”.
Um banqueiro
que coleccionava
reis e rainhas

Na vida da realeza no exílio português, cruzava-se, não raro, o banqueiro Ricardo Espírito Santo, amigo de Salazar. A revista Point de Vue, citada pelo autor de Reis no Exílio, garantia: “A grande distracção dos reis no exílio é irem às recepções de Ricardo Espírito Santo, milionário que, depois de ter coleccionado a louça dos czares, os faqueiros brasonados das famílias francesas na bancarrota, rendas venezianas e cristais da Boémia que pertenceram a ricos proprietários húngaros, se diverte a coleccionar reis”.
Em tempo de Guerra, a capital do Império português e arredores povoam-se de gente ilustre. Dão colorido e movimento a um país cheio de sol, mas cinzento por dentro. Humberto II gosta de ouvir fado ao Bairro Alto, a condessa de Paris, sempre que pode, entra nos torneios de tiros aos pombos. Nas praias a Sul, aparecem os primeiros fatos de banho de duas peças, os biquinís, e estala o “escândalo”. Uma associação de jovens, a Mocidade Portuguesa Feminina, aconselha as suas filiadas “a não olharem para as raparigas estrangeiras e sobretudo a não se deixarem tentar pelo seu vestuário perverso”.
Orson Welles, em 1946, passa umas semanas no Hotel Palácio, no Estoril, e certa tarde, quando tomava chá, fica deveras espantado com o ambiente: um homem alto, de “porte distinto”, de súbito, cativa toda a atenção do pessoal do bar. “Quem é este homem?”, quis saber o actor norte-americano. “É o rei de Espanha, senhor?” Ao sair do bar, cruza-se com outro homem, os empregados dizem “Majestade”, enquanto respeitosamente se curvam. “É o rei de Itália, senhor”. Já na recepção do hotel, ao pedir a chave do quarto, Orson Welles vê um elegante casal e “todo o pessoal interrompe o que está a fazer e inclina-se: “São o rei a rainha de França, senhor”.
Seis anos antes, em fuga para os Estados Unidos, o escritor e aviador Antoine de Saint-Exupéry ficava no mesmo hotel de Orson Welles. “Lisboa surgiu-me como uma espécie de paraíso luminoso e triste”, escreve. O autor de O Principezinho ia, por vezes, ao Casino, perto do hotel, ver os que “jogavam à roleta ou ao bacará conforme as fortunas. Não sentia nem indignação nem ironia, mas uma vaga angústia. Aquilo que nos perturba no jardim zoológico diante dos sobreviventes de uma raça extinta (…). Esforçavam-se por acreditar, ligando-se ao passado, como se nada tivesse começado a estalar há uns meses sobre a terra, na cobertura dos seus cheques, na eternidade das suas convenções. Era irreal. Lembrava bailado de bonecas. Mas era triste”.
A vida dos reis e rainhas, príncipes e infantas de Portugal também muita e variada prosa tem gerado nos últimos tempos. Sobre a Marquesa de Alorna, por exemplo, dois romances: As Luzes de Leonor, de Maria Teresa Horta, e Marquesa de Alorna, de Maria João Lopo de Carvalho. Na primeira obra, a marquesa é-nos apresentada como “uma sedutora de anjos, poetas e heróis”; o outro romance conta a história de “uma mulher que deslumbrou Portugal e a Europa”. Em vésperas “de ser executada numa prisão de Viena”, Maria Adelaide de Bragança é libertada pelo Exército Russo: Raquel Ochoa escreve a biografia desta mulher - Maria Adelaide, tia de D. Duarte Nuno, que assina o prefácio - , publicada recentemente com o título A Infanta Rebelde. Noutra biografia, Vitorino Nemésio, mostra-nos a sua Isabel de Aragão Rainha Santa. Destinado aos leitores mais jovens, destaque para D. Afonso Henriques, Meu Pai, de Maria Roma, com ilustrações de José Emídio. Aqui a vida do rei fundador surge através do “relato da rainha de Flandres, Teresa de Portugal, sua filha”.

Os amores
de Pedro
e Domitila

Da da família real portuguesa já conhecia quase tudo. Talvez não. Orlando Leite, Raquel Oliveira e Sónia Trigueirão, num grande exercício de síntese, reúnem num só volume A Vida Louca dos Reis e Rainhas de Portugal. António Saldinha, o do integralismo lusitano, que era monárquico por ser patriota, talvez ficasse desgostoso com este tipo de obras. São história de dívidas, burlas, escândalo e de paixões – onde há de tudo, “rainhas sedutoras e ninfomaníacas”, e reis com uma infindável listas de amantes. O liberal D. Pedro IV, neste capítulo, parece imbatível: por onde passava deixava marca.
A biografia de D. Pedro, na colecção Reis de Portugal, da Temas e Debates, é assinada por Eugénio dos Santos, professor catedrático. Em dois capítulos, o historiador apresenta-nos “O imperador (quase) nu” e a suas “Intimidades (quase) obscenas”. A obra termina com algumas das cartas de Pedro a Domitila, uma das suas paixões “tórridas” em terras brasileiras. O filho de D. João VI e D. Carlota Joaquina, mas missivas, despedia-se assim: “Teu filho, amigo e amante fiel, constante, desvelado, agradecido e sempre verdadeiro, O Imperador.
Noutras cartas , “o amante constante e verdadeiro e que se derrete com gosto”, apresentava-se a Domitila como O Fogo Foguinho”. Esse pseudónimo, escreve Eugénio dos Santos, “cheira a alcova, a lençóis molhados e em desalinho, a cama e contorsões de corpos nus. Talvez seja um sintoma de sexo selvagem, tão malicioso e pecaminoso como o demónio e tão violento e comburente como um fogo inextinguível”. Do filho de D. João VI, “salvo falha involuntária”, descenderam pelo menos vinte e cinco rebentos”, assegura o historiador. Mas, afinal, “quantas mulheres dispuseram das delícias dos amores de D. Pedro? É impossível lembrá-las todas, mesmo apenas de nome”. Ele enamorou-se por “damas do paço, camareiras, escravas, mulheres e filhas de funcionários e militares, artistas, modistas, filhas de comerciantes, europeias, brasileiras, uruguaias, brancas, índias, negras, mulatas... Até freiras se deixaram seduzir, enlear, pelo real amante. Em que número? Nem o próprio saberia, em verdade, responder”.
O caso com a freira, Ana Augusta Peregrino, acontece na Ilha Terceira, nos Açores. Tinha a religiosa 23 anos e era responsável pelo toque dos sinos do Convento da Esperança. Ana Augusta “provavelmente entrara no convento apenas por conveniência familiar, mas continuara a aspirar a amar alguém que lhe oferecesse carinho, compreensão”. D. Pedro parecia reunir essas característica e, além disso, “era príncipe”. A freira “encantou-se e... engravidou também. Mais um Pedro de Alcântara nasceria, mas morria cedo. Os liberais terceirenses deram-lhe sepultura adequada”.
O direito de pernada, que em certas zonas da Europa permitia ao senhor Feudal dormir a primeira noite com noiva alheia, bem lidos os factos, afinal também terá sido praticado por alguns dos nossos “fogosos” reis e príncipes. Enfim, chamar-lhe direito talvez seja injusto ou mesmo cruel. E nem sempre se configurava no desvirginar de noiva. Afonso Henriques, o primeiro rei português, terá dado o exemplo. A história já conhecida, reaparece no livro A Vida Louca dos Reis e Rainhas de Portugal. Numa visita à quinta de D. Gonçalo de Sousa, Afonso Henriques, enquanto o conde mandava preparar o banquete, “envolveu-se com a condessa”. E assim foram “surpreendidos em actos menos abonatórios”. O conde diz ao “Conquistador” que jantar está pronto. Repastaram. Depois, “cortou o cabelo à condessa, montou-a numa besta de carga voltada para a cauda, e devolveu-a os pais”.

publicado no QI, Diário de Notícias

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Não fiques à espera

Um de Outubro.
O anarquista e a sueca
Em redor dos quatro jogadores mais algumas almas atentas ao jogo. Em silêncio, quem está de fora “racha lenha”. Cartas surrentas de tanto uso. Quem dá, humedece primeiro o polegar na língua para as fazer correr. São velhos ou homens precocemente ludibriados pelo tempo? Aquilo deve ser despique antigo, haverá mesmo desconfiança de renúncia (o pecado mais grave na sueca): os homens, os quatros velhos e a silenciosa assistência, concentram toda a atenção no tampo da mesa. Felizes. No extraordinário mundo das cartas, certas situações, o duque manda no rei. Jogar assim a palavra felicidade talvez soe a falso. Eu sei. A poucos metros, uma multidão imensa e ruidosa vai crescendo. É aqui um dos pontos de encontro da manifestação promovida pela CGTP-IN. As esquerdas aparentemente juntas, definem, em surdina, territórios no desfile. Os das cartas: unidos! Unidos na doce resignação, numa tarde de sol, no Jardim da Cordoaria. Há muito não via tanta gente em protesto a desaguar na Baixa do Porto. De repente, a imagem. A imagem que eu guardarei: um jovem anarquista agita a bandeira negra numa vara de sabugueiro.

Dois de Outubro.
Quem me ama
Vila do Conde, Anos Sessenta. Assim se designa a exposição, no Centro de Memória. Vi-a na semana passada. E o que fica da visita? Uma fotografia de Ruy Belo. O despojamento da pose, um sorriso com travo a melancolia. “Quem me ama, guarda as minhas palavras” - bíblica legenda que imaginei ao ler a foto.


Três de Outubro.
Fome veloz
A pequena romãzeira ocupa o mesmo chão de uma outra, enorme, a quem estranha praga roeu a raiz. Plantei-a no ano passado, ainda não se agarrou, ainda não sabe navegar na terra. Na altura na certa, recusou florir e eu, a fazer fé na sua tenra juventude, nada vi de anormal. Hoje, observo-a e espanto-me com o inesperado rubro de algumas flores. Desconcertante o tempo do nosso tempo. Os dióspiros amadureceram cedo, fintaram a fome veloz dos estorninhos.

Seis de Outubro.
Os nossos gatos
De casa até à estação do metro, gasto vinte minutos. A pé. Faço a caminhada muitas vezes. De manhã, neste Outubro quente, vi dois gatos mortos na Estada Nacional (uma parte do percurso), e um outro na estrada municipal, atravessa campos e um bosque. Quem os não ama, diz: os gatos têm sete vidas. Estes seriam felinos do desconcertante tempo do nosso tempo. De cio veloz como a fome das aves. E esse pensamento, essa duvidosa explicação, retira dureza à imagem de morte. Do atropelamento sem fuga.

Sete de Outubro.
Terra limpa.
Leituras atrasadas, algumas tidas como perdidas, postas em dia na viagem de metro até ao Porto. Mais na ida, pois é manhã: e a luz da manhã afigura-se a melhor de todas para afagar palavras desavindas. No regresso, não raro, encontro o Herculano Lapa, proprietário de uma das raras livrarias tradicionais que resistem na cidade. E, talvez, uma das livrarias como o nome mais lindo: é a Utopia. Nessas viagens, as leituras – as minhas e as dele – ficam adiadas. Mas é de livros, de livros aparentemente caídos na penumbra que falamos. Outras vezes, dos ciclos da terra, de sementes e frutos, que um boletim editado pela Colher para Semear-Rede Portuguesa de Variedades Tradicionais espevita. Chama-se O Gorgulho, palavra adormecida desde os tempos da minha infância. Palavra amaldiçoada pelos pobres camponeses, sempre a medir a vida e todas as coisas pelos dedos da fome. Gorgulho, para quem não saiba, é (era) um insecto que atacava as sementes recolhidas nos espigueiros e nos celeiros. O boletim, que o homem da Utopia me deu a conhecer (custa um euro e meio, já saiu o número de Outubro) é o contrário do tal bichinho voraz do imaginário de subsistência. Surge em defesa das sementes tradicionais, da biodiversidade agrícola. No fundo, O Gorgulho é subtil metáfora da terra limpa. Mestre Marques Loureiro, o do remoto Horto das Virtudes, seria leitor atento e, provavelmente colaborador, da revista; Tomás Morus também a indicaria aos habitantes da sua imaginária ilha.

Quinze de Outubro.
Na rua te procuro.
O centro comercial, a minha ingenuidade imaginava vazio, fervilha. Será esta a classe média do “Portugal que pode deixar de existir”? Acompanho o meu filho na busca de um livro de História. Entramos na FNAC e, de súbito, um grupo de meninas surde aos gritos. De júbilo. E esses gritinhos enchem todo o espaço. Não há o livro. As rapariguinhas, no auditório da casa, em delírio (alguém me explicará mais tarde), viam um “DVD sobre a vida de Justin Bieber”. Dezenas de metros além, na montra de uma loja de electrodomésticos, vejo imagens em directo dos “indignados”, na Praça da Batalha. A rua. O vertiginoso regresso à rua em vários pontos do mundo. Algo está a mudar, algo vai mudar, no nosso desconcertante tempo. É dos indignados, diria agora Marcuse, que nós é permitida a esperança..

Dezassete de Outubro.
Pelo Maio
A frase na parede, a negro como a bandeira do jovem anarquista, parece ter sido escrita na noite anterior. Para (me) provocar. Creio tê-la visto antes, em território diferente da cidade. Mas (re)lida hoje atiça outro sentido. “Não fiques à espera da Revolução/ a olhar para a televisão”, eis a fisgada, a ressurgir a negro, como disse, em muro de casa devoluta, na Rua do Bonjardim. Belo nome de rua sem uma única árvore, sem um palmo de verdura. No regresso a casa, hoje, dá para ler. Ler devagar. A caminhada, já noite, rente ao bosque, campos, um riacho sujo, a seguir a horta da enorme glicínia domada a sebe. Pelo Maio debruça os seus cachos roxos na borda do caminho, longo abraço aromático. Nesses dias apetece ser eterno. Mas agora é Outubro. Depois da glicínia, na mesma borda existe um sabugueiro. Esta noite, como noutras vezes, faz-me parar: colho um raminho, guardo-o no bolso. Ritual antigo, que a minha avó me legou. A folha de sabugueiro (o jovem anarquista por certo desconhece), agachada no bolso, afasta o mau olhado.


Dezoito de Outubro.
A magnólia branca
Visita ao Farrapeiro de São Vicente de Paulo. Ao lado, no átrio do ACP, habita a magnólia branca, enorme, uma das mais bonitas da cidade do Porto. Mas Outubro não é a melhor altura para se falar de magnólias de folha caduca. Não paro, vou directo aos livros: à procura de palavras no meio da devastação de outras memórias materiais íntimas, como uma cama ou uma bengala, num exílio precário. Nestas coisas, enfim, também há o dia da caça e o dia do caçador. Encontro o Teatro Anatómico, de Mário Sacramento, uma primeira edição muito bonita da Atlântida Editora, 1959, na colecção Centauro. A obra, quatro peças em um acto, é dedicada a João Sarabando. Ao lado, com grafismo frugal, J. Stalin, Los Fundamentos del Leninismo, (terceira impressão) das Ediciones en Lenguas Extranjeras – Pekin 1972. Este detalhe convence-me.


Vinte e um de Outubro.
“A morte que talvez nos falte”
Na televisão, a dado momento, desvio o olhar. Insuportável aquela forma de ver morrer. Nas capas dos jornais, outra vez a imagem da vítima no momento da captura. Um rosto de silêncio ensanguentado (já havia excedido a expressão última do medo), troféu de caça, gira na horda em delírio – que as câmaras de tv também instigam. A impiedade não é o silêncio ensanguentado no devaneio da chusma possessa. A crueldade, na sua linha mais cínica e rude, irrompe numa outra imagem, feita por palavras: “Morreu como uma ratazana”. E aqui, perante metáfora tão brutal, nada acho para suavizar o desconforto de pertencer ao nosso desconcertante tempo. Talvez por graças do raminho de sabugueiro, afasta maus olhados enquanto seduz a sorte, entro num alfarrabista da Rua do Bonjardim (sem árvores, é verdade, mas não cessa de me surpreender) e, na banca dos livros a dois euros, se ilumina Guilherme, o Marechal. Espantosa, a escrita de Georges Duby. Na terceira página do livro, o historiador fala da morte, invisível e invencível espada, a cercar Guilherme, regente do reino de Inglaterra durante a juventude de Henrique III. E, de seguida, descreve “o ritual da morte à antiga, que não era fuga, saída furtiva, mas aproximação lenta, regulada, governada, e prelúdio, passagem solene de um estado para outro estado superior, transição tão pública quanto o eram as núpcias e tão majestosa como a entrada dos reis nas suas cidades. A morte que perdemos e que talvez nos falte”.

Vinte e cinco de Outubro.
Sonho de veadores.
O país “que pode deixar de existir”, bem vistas as coisas, deixou de existir faz tempo em diversas partes do seu território. Atravesso a serra de Fafe, o Outubro quente despede-se em copiosas bátegas. A freguesia de Guilhofrei, vizinha da freguesia onde nasci, vai deixar de existir. Nem a barragem do Ermal, no tempo da Ditadura, a conseguira engolir; tomba, agora, por decreto. “As gorduras do Estado” são, afinal, os “vencimentos” do regedor e respectivo cabo de ordem. Algures, em Guilhofrei, há os socalcos de Gandufe. Muitas vezes ouvi do meu pai a promessa: “Havemos de ir afuroar os socalcos de Gandufe!” Não fomos, é verdade. Mas tanto eu como o meu pai ainda guardamos esse sonho de veadores à moda antiga.

Publicado no JL