segunda-feira, 28 de junho de 2010

azul como uma laranja

Apaga o cigarro. O gesto vagaroso ajuda-o a clarear algo que o intriga. Já o avisei, fumar em toda a parte é privilégio antigo. Sou um homem anacrónico, responde. Hoje não o adverti. Noto-o inquieto. E isso espanta-me. Mesmo em situações adversas, vivemos várias, ele mantém a serenidade.
Temos de pedir autorização.
Sem esperar por comentário meu, retira do envelope a fotocópia de um trecho manuscrito, lê: “a operação irá mudar o nosso futebol, estamos próximo de alcançar esse desígnio histórico. O presidente, o director desportivo e uma outra pessoa conhecem o plano – áspero golpe no dragão”. Outro cigarro lhe rola nos dedos.
Presidente, director desportivo
E o outro?
O nome do outro virá à rede.
Acende o cigarro. O fumo atravessa a fina luz e rouba-lhe um pouco de azul; a luz do Sol, na sua infinita transparência, esconde o arco-íris. Belo dia de Fevereiro, lá fora o florido encanto das magnólias. É um gosto ler a generosidade das árvores. Agora pondero a palavra do meu camarada.
“Um rude golpe …”.
Que fiabilidade se atribui a fotocópia e meia dúzia de garatujos? Pode ser patuscada, e mordemos o isco. As alegadas vítimas usam-nos para investigarmos os outros. Na porfia de raposa, bem sei, por vezes cai a alcateia. Apaga o cigarro, uma pequenina nuvem sobe devagar até se diluir no tecto.
A carta foi enviada de onde?
Lisboa. Pressinto, o plano é grave.
Que juiz despacha com base em intuições? É preciso indício forte, e nós temos um convicto pressentimento.
Alheio à minha palavra, redige o pedido. Como ele diz em voz alta o que escreve, conheço o fundamento: “… tenebrosa conspiração, caso não seja desmantelada a tempo, distorcerá a verdade do futebol pátrio”. O requerimento segue por e-mail. A rapidez de procedimento, na birrenta justiça, permite-nos sair antes do meio-dia, descer a pé à Baixa. Pelo caminho, compramos A Bola e O Jogo. Pelas entrelinhas, diz o meu camarada, também se chega à matilha. Essa forma de escrever e ler, digo, era no tempo da ditadura – os censores até a meteorologia vigiavam, não fosse súbito nevão significar borrasca do reviralho.
Chegamos à Avenida do Aliados, despovoada de árvores. Imagem agreste, dói tanta pedra. O presidente e o primeiro-ministro discursaram neste lugar no 31 de Janeiro, abertura do Centenário da República. Dia frio, chuvoso.
Ouviste o presidente?
E nada lembro. Nos discursos há esse lado bom.
Eu retive palavras do Torga, ditas pelo presidente. “Quem morre pela liberdade todos os séculos, é capaz dos mais espontâneos entusiasmos”.
Do Torga conheço o diário. Bichos, não é?
Uma cidade herdeira desta história, do passado e do devir, jamais será alvo de conspiração sombria.
Não te percebo – diz o meu camarada. E pára, no meio da praça, a rever talvez conhecimentos literários.
Bichos, pois Bichos é livro do Aquilino. Grande caçador de perdiz.
Sorrio. Ele entende bem o meu sorriso.
Se Torga fosse da caçada dos policiais, não trocaria os títulos. Tu sabes. És testemunha, António.
Eu já tenho nome. Almoço no Solar da Conga. Sopa saborosa, o resto mantém a tradição na casa da perdiz na cataplana, durante a época venatória, por encomenda restrita. No pátio interior, pela porta envidraçada, vêem-se mesas postas.
No catálogo dos frios, os de Fevereiro, os mais ruins de todos, mordem pela calada. Entram no corpo e por aí se aninham como animal à procura da morte.
Percebo, António.
A tal sopa de legumes, debaixo de tecto. Bacalhau no forno, batata miúda, e legumes salteados. Uma Esteva. Tinto, tinto cai sempre bem – até com hóstias da missa.
Depois do café, dei uma vista de olhos no Jogo, ele deteve-se um bom pedaço no outro desportivo.
Este Di Maria comia-me a côdea!
Agora sou eu que te não entendo.
O meu camarada admira-se.
Olha, olha, o leitor do telúrico desconhece a expressão! Assim falavam os caçadores dos bons cães alheios.
Nos alçapões das entrelinhas…
Nada. Os desportivos parecem jornais de economia. Transferências, valor da imagem, passivo de milhões… opulência desmedia, António.
Por volta das quinze horas, havia despacho. Surpreendente a destreza das novas tecnologias, a pressa do magistrado. Pressentimentos fortes, paixões que vulnerabilizam – talvez seja isso.
Podemos armar o laço, António!
Durante a tarde tratámos do processo. Falámos às operadoras, testámos a aparelhagem, quedámos à espera de conversas comprometedoras. Nada. A armadilha fica accionada todo o tempo. Vou de metro para casa. A Bola, raramente a vejo, como leitura dos quarenta e cinco minutos de viagem. Di Maria, paro na página do Di Maria… Borges, se voltasse ao mundo dos vivos e da luz, talvez lhe destinasse um poema. Nos olhos de Di Maria foge tristeza longínqua. Épica. Os poetas pouca importância concedem ao futebol. E é pena. Como tudo seria diferente se a bola fosse azul como uma laranja. Fecho o jornal, limpidez nas entrelinhas: a grande conspiração será delírio do meu camarada, validado por magistrado, zeloso da pureza do futebol pátrio. A pá e picareta, arrotearam o campo da bola. No tempo da fome, no tempo da ditadura. O Campeonato do Mundo de sessenta e seis, os golos de Eusébio à Correia, “cinco a três foi a conta que Deus fez”, cantávamos, o futebol a hiperbolizar o orgulho da pátria triste! A modalidade crescia. Neste contexto de fogo nacionalista, o presidente da junta anuiu: talhou-se parte de um terreno baldio, só tojo dava. E um grupo de voluntários, homens do rude trabalho braçal, aplaina a terra maninha em menos de dois meses. Era Verão, uns trabalhavam de dia, outros durante a noite.
O presidente da junta e o padre abençoavam a empresa. Um lavrador oferece os eucaliptos; o carpinteiro, trabalho e feitio e assim surgiam as robustas balizas. Outros agricultores mandam pelos criados garrafões de vinho, do que a trovoada revolve dentro dos pipos, por isso amargo como fel. Sob a rudeza do Sol, os trabalhadores bebiam-no com imensa alegria. E o vinho atiça-os, cobrem-se de brios, picados em despique. A notícia atravessaria a longura do mar, chegaria ao Brasil pouco antes do emigrante retornar às origens. Daí, acaso generoso, surge o equipamento. À Vasco da Gama. A oferta e uma condição: o benemérito exige entrar em campo alguns minutos. Jogar equipado, bola de capão, no rectângulo mágico, minimamente nivelado, balizas e redes, era o sonho maior de qualquer mancebo. O brasileiro teria idade de avô, todavia, isso não o impediu de alinhar de início, perna seca e esbranquiçada, parecia até que naquele país distante o Sol, de tão escasso, pertencesse à categoria dos bens preciosos. O país irmão era sombrio. E ele, o brasileiro, louco por futebol. Orgulhoso: a mãe de Pelé foi cliente da sua padaria. Como pôde pobre mulher gerar filho tão talentoso? Proferia o benemérito, no largo. Ufano, no meio da roda cerra de gente carente de notícias extraordinárias, que o privava de colher a mansa luz da manhã. Vício do seminário, talvez, o padre de igual modo se perdia pelo esférico e lugar teve, quem lho negaria!, no onze inaugural, camisola 10, chuteira de travessas de sola para reforçar a aderência. Areia grossa, áspera, florescia em certas partes do recinto e lixava a pele dos desafortunados que por aí caíssem. Eu vi a bola surgiu redonda, limpa, na ponta da bota do emigrante. Deslumbra-se perante dádiva tamanha: espaço aberto, baliza a distância confortável, defesas fora da jogada, porque o padre, vício de seminário, os finta, piedosa mestria, e desmarca o bem-fazente, número 11 nas costas: quem oferece um equipamento completo pode dar largas a seus caprichos. Naquele tempo, bom guarda-redes teria de jactar-se do rótulo de amalucado, pois só assim mergulhava no saibro duro, alheio à brutalidade dos pontapés do inimigo; no sector defensivo ficavam os medíocres, gordos ou estropiados. Missão única: abalroar o adversário, seguindo a velha táctica de “até ao joelho é tudo bola”. Os da linha média não tratavam a bola por tu, mas para essa convivência caminhariam. Por fim, os avançados, a fina flor, no lugar de deuses como Eusébio e Pelé. O brasileiro reclamava esse posto, compatível à sua dignidade, de contrário daria as camisolas a lavradores para os seus jornaleiros usarem nas vindimas e os calções na pisa das respectivas uvas. E deslumbra-se, tanto que julgando ter menos quarenta anos ensaia um remate à laia do filho da pobre mulher que lhe comprava pão… Abeira-se o meu apeadeiro, esqueço A Bola sobre os gratuitos cansados.
O dia nasceu encrespado pelo meio da névoa. Chuva, muito vento, pela manhã. A beleza das magnólias ressente-se da intempérie, digo ao meu camarada. Ele tinha chegado primeiro, e verifica a armadilha: desarmada, sim, mas sem o passarinho de asa levemente erguida, olho revirado. Ar e vento, o arame impulsionado pela mola bateu em seco na tábua. Ar e vento. Falaram, porque falar ao telemóvel é vício absurdo, silêncio ruidoso da contemporaneidade.
A truta namora o isco. Dissipada a dúvida, investe voraz.
Dúvida é ignorância de gente, António. De qualquer forma, há mensagem cifrada. Todo o mundo agora se abriga na metáfora.
Falam de fruta?
O meu camarada sorri.
António, ouve esta transcrição:
“Viva, Rui! Como vão as coisas?”
“Pensei no assunto, presidente. Faz falta ao grupo, ao espectáculo… como as cerejas no Maio”.
“Eu sabia, você… mais barato que brasileiro em segunda mão. Falamos no centro de estágio, antes do treino… Não se esqueça, dê de comer aos passarinhos!”
Ouviste, António.
Ouvi, há fruta.
Que fruta?
Cerejas.
Isso não tem importância. Dê de comer aos passarinhos… Temos de partir daí, deste enigma. Onde se viu líder de clube, grande ou modesto, lembrar ao director desportivo coisa desta natureza.
A razão agora está do lado do meu camarada, que vou nomear a partir desta precisa linha para o conto não parecer excessivamente político.
Pois, Raimundo: não é conversa de passarinheiros… O gato escondido, barbas de fora, andará nas cerejas do Maio.
Final da Taça dos Campeões?
O futebol esbanjou a vernaculidade, digo, para a dúvida amadurecer. Na investigação, ensina a experiência, o de vagar é a maneira mais célere de se atingir resultados aceitáveis. Raimundo sabe isso tão bem como eu.
Engravatou-se, António. O desporto do pé descalço virou matéria de análise erudita.
Raimundo, e o cantor no trio de comentaristas? O cantor desencantou-me.
Estamos na sociedade do apareces na pantalha ou não existes.
Cessa a borrasca. O sol enxuga a acalmia. Perfeita. A fragilidade das flores da magnólia resiste à fúria do vento, ao açoite da chuva. Não era ainda o tempo de cair por terra, de virar húmus e, por secretíssimo enredo, de novo seiva, flor ou folha. Sobre a minha meditação vegetal expele o fumo do cigarro. Fumei anos, de que autoridade me arrogo para lhe embargar o prazer?
O futebol mudou rápido, Raimundo. No primeiro jogo que assisti, partida inaugural do campo da bola da minha aldeia, morreu um dos jogadores. Ele acabava de marcar o golo, o primeiro golo numa baliza com redes na terra que deixou ainda moço empurrado pela penúria. Do outro lado do mar, vendeu pão a muita gente, e entre esse povo estava uma pobre mulher que o filho, Edison Arantes do Nascimento, havia de retirar do olvido. A bola redonda, sem galhos, na ponta da bota... o padre limpou o lance, o chamado drible checo, sabes o que isso é?, eu também não, soa bem, sugere jogada de xadrez, os defesas apressam-se sôfregos, cães famintos atiçados pelo tépido odor de vísceras, e ele, o sacerdote, perna lanuda, numa nesga, aplica-lhes o drible checo e, logo logo a bola, com conta peso e medida, e dito assim se evoca o grande Alves dos Santos, roça a ponta da bota do brasileiro. Um sonho. Só nos sonhos as coisas são assim perfeitas. Quis rematar à Pelé, ele, 11 nas costas, multidão em silêncio, atónita: à espera que a bola surdisse veloz como andorinha numa manhã de névoa. E ele reuniu a força que podia, Raimundo, e arremessou o pontapé: saiu a bola rente ao areão, mesmo maluco guarda-redes algum teria o arrojo de lhe travar a viagem triunfal. Entrou junto ao poste, o povo ergueu os braços como árvores de alegria. Breve júbilo. O ponta de lança caia desamparado, sem sentidos. Morto. Rebentara-lhe a veia do pescoço, corria entre a multidão comovida.
Na manhã do dia seguinte, quando cheguei, Raimundo lia em silêncio transcrições de duas capturas. Armadilha accionada, todo o tempo é pouco para esta veação. Olha para mim, impaciente.
Os tipos fogem-nos das mãos como enguias. Foram alertados… O presidente relembrou ao director: não esqueça os passarinhos. A partir daí, mudou o rumo da conversa.
Ouve: “...a melhor forma lá chegar é por via do editor”.
Agora o presidente: “É dos nossos?” A segunda escuta, às 23.45 de ontem, é a resposta: “Ele é bom pai de família, discreto. O outro, amanhã, vai convencê-lo a levar-nos até ao homem. Que é uma fera, mas entrando o editor na jogada fica tudo facilitado… Operação de grande melindre, se...”.
“O Rui deu de comer aos passarinhos?”
“Agora mesmo, os canários...”. De que jornal será esse editor. Do Jogo?
Há editores fora dos jornais, Raimundo.
Mais emaranhado se torna o caso. Como chamava o jogador que morreu em campo?
O Fehér.
Não.
O Pavão,
O da tua terra.
Era o Zeferino brasileiro. Gabava-se de ter espalhado semente no Brasil, vários filhos havidos de diferentes mulheres. Aqui chegou sem família. Talvez o homem exagerasse na virilidade. E podia fazê-lo: certo e sabido, ninguém iria a terras de Vera Cruz testar a veracidade de suas conquistas ou a qualidade do seu pão.
António, se o intermediário é livreiro, que será o outro?
Um jornalista. Ou ex-jornalista, agora no papel de assessor. A mobilidade nesse ofício é alucinante.
Nas semanas seguintes nem sequer um “Olá, bom dia”. Emudeceram. Esquivo silêncio, alguém os terá avisado. Raimundo pede-me para saber quantas editoras existem na cidade.
Seguiremos o rasto por outros atalhos.
Se a cidade tudo perde, as editoras também abalaram na enxurrada. Todavia, quedaram os anéis. Os verdadeiros editores resistem, mesmo nada tendo capaz de conter a voragem.
Li, há dias, uma notícia de livros guilhotinados.
Na Revolução Francesa, António?
Como?
A guilhotina.
Um grupo editorial adquiriu várias editoras. E, agora, abate milhares de livros. A cruel da palavra denunciou-a um editor. Como se chama o homem?
Vê-se já no Google… “livros guilhotinados editor”… Cá está: “… livros da autoria de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço e Vasco Graça Moura, Urbano Tavares Rodrigues foram destruídos recentemente. A acusação é do editor...”.
Quem é a personagem?
Raimundo acende o cigarro. Sai do Google, inicia o pedido ao juiz. Como é seu hábito, dá voz, sonoridade às palavras antes da escrita, “… por isso carecemos de alargar o universo das escutas ao alvo J. da Cruz, editor, conhecido pela sua grande paixão do futebol, tanto que publicou em Portugal A Angústia do Guarda Redes Antes do Penalty, de Franz Kafka…
Peter Handke, Raimundo!
Pois, tens razão: e como se escreve?
O pedido seguiu por e-mail. Apaga o cigarro, levanta-se.
Onde poderei comprar A Angustia do Guarda-redes Antes do Penalty? O título encanta-me há anos e só agora, por causa dos passarinhos, me apetece ler. Ou tentar. Tu sabes, até à última página só os policiais do catalão.
Se a memória não me falha, nos anos oitenta saiu uma edição do livro, na Relógio D’Água. Não o li até ao fim, é uma história perturbadora. Eu sei, polícia deve apresentar-se imperturbável, como os polícias dos filmes: destemidos, tocados pela imortalidade.
Na livraria Latina talvez se encontre – digo.
Fim de manhã luminoso. Saímos para a rua. Em homenagem a Torga (ou a Aquilino?), fomos ao Antunes, no rasto da perdiz, de agradável paladar, na época ou em pleno defeso. Raimundo, neste restaurante bebe espadal, uma espécie de vinho, rosado e leve, um dos traços identitários da casa ao lado do pantagruélico pernil de porco assado. Novo pressentimento. O meu camarada pensa descobrir, durante o almoço, a pista do “desígnio histórico”. Pela intuição dele, enfim, a comunidade de criminosos, corruptos e outros da mesma família prosperaria eternamente impune. Palpite de polícia bater certo é como ganhar lotaria sem jogar. Foi a perdiz, e ele ainda retouçou uma rabanada, outra especialidade da casa sem época de defeso. Retine o telemóvel do Raimundo. Obriga-o a acústica do salão a sair da mesa; fuma um cigarro na rua e volta com a notícia: luz verde do tribunal para vasculhar a palavra do editor.
A escolha minha, também tenho direito a premonição e a segui-la até ao fim. No dia seguinte o almoço foi no Buraco. Pela manhã havia duas conversas do editor. A primeira sobre poesia com um advogado da cidade. O editor convidava-o a organizar uma antologia poética. E o homem de leis “muito honrado” se sentia. “Não esqueça o Guillevic”, disse o editor. “Quem!”, disse o advogado. Na segunda chamada, alguém que não se identifica marca encontro no Café Progresso. “O senhor não se lembra de mim, quando eu trabalhava nos jornais, falámos uma ou duas vezes, foi há muito tempo… ”. No Buraco pedimos filetes de cherne, do melhor que há na cidade e arredores dos arrabaldes. Duas sopas, peixe a singelo não segura o vinho e nós somos como o Jacinto: tinto, sempre tinto. A minha premonição consistia no seguinte: na diversidade de clientes (remotos apoiantes da candidatura de Humberto Delgado, lojistas, arquitectos e gente dos tribunais) acomodada em mesas tão próximas, iria saltar uma palavra, a palavra que nos levasse ao “desígnio histórico”. Fácil de ver, o acaso na investigação policial é heresia. Almoçámos bem. E, desta vez, o café seria bebido noutro lado. Duas ou três mesas vazias, ocupamos uma e pedimos o café. Café de saco. Estaria ali o editor? O encontro marcado para as quinze horas, faltam vinte minutos. De forma discreta, percorro com o olhar, uma a uma, as mesas. Ao fundo, está um homem sozinho, com idade, se é ele a pessoa que procuramos, para ter editado neo-realistas da primeira vaga. Entra agora um sujeito, de meia-idade, irresoluto, procura alguém.
Raimundo, e o livro?
Qual livro?
A Angústia do Guarda-redes…
António, devias ter avisado. Vinte páginas e caiu no arquivo morto… Olha, o soldado desconhecido está a passar-lhe um cartão.
Os dois homens levantam-se. Cumprimentam-se na rua, seguiram caminhos diversos. Raimundo paga os cafés no balcão, saímos.
Vinte páginas…
Metade, António. Não gosto de entristecer pelas histórias dos livros. Que achaste do soldado desconhecido?
É o outro, sem dúvida.
Gosto de te ouvir assim. Um verdadeiro agente da autoridade jamais declina perante a dúvida. A dúvida, já o disse, é ignorância de gente ou passatempo de filósofo. Faltou-lhes tempo para gizar grande conspiração – a ratoeira nos dará notícia segura.
De novo na Baixa, na avenida dos discursos do 31 de Janeiro. Entramos no metro. Viagem breve. Pedimos para falar com o treinador. “O professor não tem encontro nenhum hoje agendado”. Raimundo identifica-se. “Sendo assim”, diz a relações públicas, “o professor só poderia falar na presença do seu advogado…”.
Eu não tenho advogado, disse o Raimundo.
O seu, dele, professor…
Agora a minha vez de entrar na conversa.
E se a menina tivesse a amabilidade de perguntar a opinião do professor? Ele não é suspeito de nada, coisa nenhuma. Vimos aqui, se quiser, pedir-lhe, a ele, professor, ajuda.
Após vários telefonemas, a menina chama um segurança.
Leve os senhores.
Preferimos a sua simpática companhia. Polícia não precisa de segurança – diz o Raimundo.
São as normas da casa… – Faz um gesto, o segurança volta à base. A jovem acompanha-nos ao local.
O treinador está sentado. Levanta os olhos à nossa chegada, e logo os baixa como já estivesse farto de nós.
Tenho pouco tempo.
Precisamos da sua ajuda.
Diga.
O rendimento dos seus melhores jogadores, nesta época, é aquele que esperava? – pergunta o Raimundo.
O senhor é polícia ou jornalista da Bola?
Se fossem desviados pelo rival, ficaria espantado?
Atónito estou eu com as suas perguntas. Por favor, tenho assuntos interessantes a tratar…Enfim, o início do campeonato não foi o mais desejado… De qualquer modo, continua tudo, ouviu?, tudo em aberto.
Aprovava o Di Maria no seu onze?
O senhor também é…
Sim, também não sou jornalista da Bola disfarçado de inspector da Judiciária. Se nos ouvir poderá ganhar o dia, ou até o campeonato.
Não tenho mais nada a dizer.
Levanta-se, ágil. Dir-se-ia gesto incompatível com a idade. Chama pelo telefone interno a jovem das relações públicas.
Mande o segurança aqui, para acompanhar… Como? Então venha você.
Regressamos ao metro, mãos vazias.
Quando as coisas começam a correr mal, os treinadores ficam amargos. Tinha a melhor impressão deste cavalheiro.
Vamos pô-lo sob escuta.
Pressentimento, Raimundo?
Serão os jogadores o ele…
E Transferência de treinador é “um rude golpe”?
Passamos o dia seguinte a ler as transcrições de seis escutas. Muito comprometedoras, considera Raimundo. Tanto que abdicou da pista do professor. Numa delas, o director desportivo informava o presidente do encontro entre o editor e o soldado desconhecido. “A princípio torceu o nariz, depois achou a iniciativa muito criativa. Contudo, o êxito do convite, da proposta, depende dos humores do homem”. Noutra escuta, deveras importante para nós, o presidente diz ao director o local da pernoita. “Rui, é uma jogada de mestre”.
Pombas e gaivotas, vasto bando, disputam um pedaço de pão duro; o gorjeio agreste das aves marinhas faz eco na cidade despovoada. Depressa vencem a faminta resistência das pombas. De vigia à porta do hotel O Porto dorme, ainda dorme. Até dentro do automóvel o frio se sente. Frio da alvorada e seu rigor que a pobre gente conhece há gerações; Raimundo dormita, ou parece, como se o sono o aquecesse. A segunda partida no campo da bola de igual modo ficou aquém dos noventa minutos regulamentares,
Após um drible checo…
Não dormes.
Ó António, tu sabes, nunca dormi em serviço. Foi o padre que morreu?
A morte não levou nenhum dos jogadores. Por pouco. Uma entrada mais dura, como agora se diz, por parte de um forasteiro deflagrou em brusca e sangrenta cena de pancadaria; depressa o fogo da luta alastrara à assistência e então foi uma desavença colectiva. Quando os dois pesados agentes da GNR chegaram toda a gente havia molhado a pena na equipa visitante, de uma freguesia vizinha, e na tímida claque. Eu miúdo, teria seis anos: visão de fim do mundo, corri para casa e o medo era tanto que me gelou as palavras. A mãe, viu-me tão pálido, fez um chá de erva-cidreira. Enquanto a água levantava fervura, pegou-me ao colo – o doce gesto aquietaria meu coração. Olha, olha, quem lá vai, Raimundo!
O soldado desconhecido…
A cidade enche-se de sons; os autocarros despejam gente, os automóveis sufocam o espaço. O homem entra no hotel. Daí saiu, duas horas depois na companhia dos dirigentes. Seguem os três no mesmo automóvel, conduzido por um indivíduo desconhecido. O trânsito intenso permite-nos tê-los a distância segura; dirigem-se para a marginal, na direcção da Foz. Bonita manhã de Março; o Douro suave, livre do pesadelo das enxurradas de Inverno. Marginal, menos trânsito, o carro que seguimos faz uma ultrapassagem; entre nós agora existe outra viatura. Raimundo, na primeira oportunidade, volta a colar-se à comitiva presidencial. O director, óculos de sol, volta-se como se pressentisse a perseguição, e poucas centenas de metros além o automóvel abranda. Discretos, como convém, paramos mais à frente: saio, deixo Raimundo a estacionar. Vejo o editor a cumprimentar os homens; sem perder tempo, avançam uns metros, o editor acciona a campainha. Passeio Alegre, o mar da Foz, luzidio como pêlo de animal selvagem, bebe a caridade da manhã. Raimundo vem ao meu encontro.
Para onde foram?
Se te disser, não vais acreditar!
Aplicaram-nos o drible checo, António...
Di Maria bem merece. Talvez o Borges, se fosse vivo, por livre impulso ou, o mais provável, por um punhado de... qual é a moeda da Argentina?
Não sei.
Borges, sim, iluminaria a tristeza épica do seu conterrâneo.
Raimundo acende agora o cigarro que há muito segura entre os lábios. De repente, um carro da polícia pára, brusco, rente aos nossos pés; estaciona no passeio: dois agentes impelidos pelo fogo da urgência. Primem a impaciência no botão da campainha: uma mulher abre a porta, denuncia preocupação no semblante.
A tropa macaca fintou-nos? Não podemos ficar parados: a investigação é nossa, António!
Recomendo calma. A porta da casa reabre. Sai o presidente, o director, o ex-jornalista e os dois polícias. O carro, que não havia achado espaço para estacionar, aparece. Entram, rosto fechado, batem as portas com indelicadeza, o automóvel parte a grande velocidade. Raimundo aproxima-se dos polícias, eles dentro da respectiva viatura.
O que é que se passou?
Não é da tua conta!
E o carro irrompe também veloz, nem tempo dá a Raimundo de se identificar e dizer que só o trata por tu quem ele quer. O editor abandona agora a casa, caminha pela manhã como se nada de anormal tivesse acontecido.
Primo o botão da campainha. Outra vez. A mulher do semblante preocupado abre a porta.
O senhor hoje não recebe visitas.
Somos da Polícia Judiciária.
A mulher fica exasperada, é assim que uma calma manhã de Março vira pesadelo.
Chamei a PSP... O caso está resolvido!
Não para nós. Diga ao senhor.
Sala ampla, muitos livros e claridade. Cheia de manhã. Pelas grandes janelas vê-se o mar, manso, sem o rumor salgado. Ele continua no sofá. Um gato preto
É uma gata!
E como se chama a gata?
Disseram-me que vocês eram polícias...
Investigamos uma grande conspiração.
O homem arregala os olhos, muito claros, como dois peixes verdes ( creio que usa essa metáfora num poema). Suspende o lento afago no pêlo da gata.
Grande conspiração!
Isso mesmo, senhor Eugénio – diz Raimundo.
Proíbo, ouviu!, proíbo-o de me tratar por senhor Eugénio.
Uma grande conspiração. Pode ferir rudemente o futebol pátrio.
Eugénio sorri. Um sorriso inesperado, tanto que assusta a gata.
Miki, Miki, vem cá...
Que veio fazer aqui a comitiva?
Qual comitiva?
A que acaba de sair escoltada pela polícia.
O poeta volta a sorrir, mais solto.
Eles pediram-me para ser o autor do hino do clube, veja o desplante! E que escrevesse um poema a um Di qualquer coisa...
Di Maria.
Isso. Quem é o Di Maria?
Se Borges fosse vivo...
Você leu o Borges!
Borges não se conjuga no passado: lê-se sempre.
Sim, há coisa melhor... O Di Maria é jovem?
Não mais de vinte anos. Torso de guerreiro de Tróia, uma tristeza épica.
Eugénio levanta-se. O retrato do futebolista argentino parece ter-lhe incendiado a amargura. Volta-se para o Raimundo, a investigar, faz tempo, as lombadas dos livros.
A poesia, senão for o lugar onde o desejo ousa fitar a morte nos olhos, é a mais fútil das ocupações. Agora, diga-me: e que tenho eu a ver com a grande conspiração, senhor inspector.
Nada, foi equívoco. Pelo que vejo, o senhor desaprecia os policiais.
Descemos a escadaria até à porta da rua. “Ele virou fera”, conta a mulher que nos acompanha. “Desatou aos gritos, fui obrigada a chamar os seus colegas”. A manhã, fim de manhã agradável. Um grande passeio a pé, ondas por perto, e só depois regressámos. A multa de estacionamento presa contra o vidro pelo limpa pára-brisas. Raimundo amarrota o papel. Acomoda-se, acende o cigarro (hoje pode fumar no carro). E partimos devagar, vidros abertos – como se quiséssemos levar o frémito do mar.


in Fora de Jogo, livros de contos, vários autores, Caminho das Palavras, 2010

domingo, 27 de junho de 2010

Pequenas coisas e cães de caça

Tenho quase meio século. O tempo. O tempo ajusta as coisas no devagar de subtis ciladas. Troquei de rosto. Ramo de árvore sou e, deste ramo, outros ramos vão crescendo. O tempo. O que guardamos do tempo? Um dos meus irmãos trabalhava na construção da barragem de Vilarinho da Furna.  Um dia contou um episódio que se prendeu à minha infância como sombra comovente: houve vilarinhos que recusaram abandonar a aldeia; a água foi subindo, entrou pelas casas, dilúvio sereno, e, a dada altura, as mesas, os mochos e outros utensílios de madeira da pobre gente levitaram no meio da tragédia. Boiavam no interior das casas que a água, cativa pelo imenso paredão, ia devorando. A imagem da mesa, onde gerações repartiram o pão e a fome, agasalhei-a no meu silêncio. Seria, talvez, a última claridade na sombra comovente.   Anos depois, através dessa pequenina mácula de luz sobre as águas, escrevi Diário de Link. O que guardamos do tempo? Nada. Quase nada.
TOCAR OS LIVROS. Andei por Braga. No Liceu Sá de Miranda vi a primeira grande biblioteca da minha vida. Na escola de Vieira do Minho, Abril pintado de fresco, a preocupação era mais prosaica: reinventar espaço abrigado para meter alunos, todos os alunos. De madrugada, o direito à educação extorquía as crianças das aldeias, autocarros decrépitos a rondar a centena de passageiros. Chegávamos exaustos à vila, voltávamos com a noite a casa. A súbita democratização do ensino fechava os olhos à segurança, deixava os livros para mais tarde. Antes do Sá de Miranda, muitos livros só na carrinha da Gulbenkian quando, uma tarde por mês, aportava no largo. Mas o guardador da palavra mostrava-se tão desvelado que era um verdadeiro acto de afoiteza entrar na biblioteca andarilha. O homem, nunca o vi sorrir, impedia afagos nas lombadas, confinava a escolha a dois ou três títulos. Intimidava com a ignorância de sua autoridade. E quem ousasse requisitar um livro, teria de o devolver sem dedadas ou outras impurezas – como se as pobres crianças do Estado Novo tivessem mãos imaculadas. De acesso ínvio também os livros no Sá de Miranda. Com o tempo (o que guardamos do tempo?) caí nas boas graças do funcionário. Do remoto maravilhoso montesino, pela Páscoa, levava-lhe umas trutas, acomodadas em hortelã; no Outono, coelho bravo e uma perdiz. A amizade cresceu, frondosa como a França das tílias, pelo Maio, no recinto interior do liceu. Na vagarosa viagem pelas estantes, um dia o indicador pára sobre um livro de Sá de Miranda. Retiro-o do repouso – eu podia ter esse gesto –, leio, de pé, como gostava de fazer. E os versos, ali, à minha espera. Sempre estiveram: “Comigo me desavim, / sou posto em todo o perigo:/Não posso viver comigo/Nem posso fugir de mim”. Anos volvidos, verti um a amargura de Sá de Miranda nas páginas de A Morte do Dali. Em Braga, o encontro com José Manuel Mendes – ele professor, eu aluno. Um dia entrámos numa livraria, descemos a um piso subterrâneo (vedado ao público, creio), onde havia centenas de livros com preço antigo. No cardume adormecido, A Lua e as Fogueiras, edição de bolso, muito bonita, da Portugália. Ele ofereceu-me o livro. Cesare Pavese, a partir daí, fez-me companhia longos anos no delicado ofício de viver.
AS ÁRVORES. Talvez uma década depois, regresso à Escola de Vieira do Minho.   Edifício novo, salas confortáveis, e uma biblioteca tomada pela cegueira: sem acervo, sem a claridade dos livros, sem a paixão de bibliotecário. Inútil. Dois anos no ofício de professor incompleto. No café, perto da escola, perfazia o horário escrevivendo histórias de O Homem do Saco de Cabedal, que haveria de publicar algures no futuro. O que guardamos do tempo? Lembro-me de alguns alunos, lembro-me do inesperado regresso à política no movimento de apoio a Maria de Lurdes Pintasilgo. E pouco mais. De pequenas coisas se faz a minha vida. Fui a Coimbra visitar o meu irmão, estávamos na República O Ninho dos Matulões e toca o telefone. Para mim. No jornal O Primeiro de Janeiro havia vaga de estagiário: teria de me apresentar na manhã seguinte. Assim fiz. Agustina Bessa-Luís, a directora, recebeu-me. Breve encontro, na penumbra de um amplo gabinete, e um sorriso enigmático na despedia. Aí conheci Alberto Serpa, arrastava pelos infindáveis corredores a indignidade da velhice, com se fosse poeta anacrónico. O tempo: que guardamos do tempo? Chegava pela manhã, enfiava-se no gabinete minúsculo, envidraçado, e removia sem cessar, num delírio obscuro, os papéis. Parecia corrigir provas, parecia melhorar prosa alheia. Serpa era o responsável pelo suplemento Artes e Letras, mas a palavra iludia-o, a velhice censurava-o. Talvez fosse para ali, todas a manhãs, velar apenas pelos textos do seu amigo José Régio, que se exprimia em letra redonda e tinta azul. Vi muitos desses manuscritos na espantosa biblioteca do Janeiro, zelada pelo senhor Pereira Vale, discreto camiliano. Dois livros esquecidos na secretária; estavam ali à minha espera. Agora na redacção no Diário de Notícias. Dois livros de poesia, dois, do mesmo autor que não conheço. Abro ao acaso um deles e fico, digo assim, perdido na palavra: “o homem lança a rede/ e não divide a água”. Pouco depois, estou a ligar para o Mosteiro de Singesverga, procuro um tal Daniel Faria. Que se encontrava no Mosteiro da S. Bento da Vitória, no Porto, dizem-me. No dia seguinte, entrevisto o poeta que ia ser monge. Voltei a ler poesia por causa da poesia do meu amigo Daniel. Os livros, “Homens que são como lugares mal situados”’? Manuel Duarte, o meu bisavô, veio do Sul. Conhecia a memória das árvores, talvez soubesse mesmo seu idioma rumorejante. Não é do meu tempo, nem sequer uma fotografia existe desse homem do Sul. Do meu bisavô herdei a paixão das árvores: quando arriba o tempo justo, afio a navalha de enxertia, mudo o destino de algumas. Faço enxertos de alporquia, de borbulha, de encosto; sei achar o cavalo forte para o garfo navegar, crescer, fazer-se nova árvore a partir de raiz estranha. Esse legado vegetal, que imagino ter vindo do meu bisavô, emprestei a personagem de A Fenda no Cavalo: acalentava o sonho de florir aldeias abandonadas. Para cumprir esse poético desígnio, ele queria enxertar glicínias brancas em cavalo de silva brava. Impossível, eu sei, nem o oitocentista Manuel Duarte executaria com sucesso tal alquimia.
FOGO OU MÁGOA. De novo na geografia da infância. Os cães, os cães de caça do meu pai, todos, em coro, uivo plangente a ecoar no silêncio da manhã. Uma vez por ano, ao longo de uma década, eu ouvia a anormal manifestação da matilha. Foram os dias mais tristes da minha vida: o pai partia para o longe. Nesse tempo – que guardo, afinal, eu do tempo? –, dois meus irmãos partiam para mais longe ainda. A guerra. Vi-os, heróis transidos, abraçados a infinita melancolia da mãe. “Vamos em quatro anos de lutas e ganhou-se alguma coisa com o dinheiro do povo, o sangue dos soldados, as lágrimas das mães? Pois atrevo-me a responder que sim?” A hediondez de Salazar, a crueldade da ditadura. Roubo estas palavras ao amigo Augusto Baptista: “sou pai e filho”. Às vezes escrevo, pela noite dentro, histórias para crianças. As palavras, o seu enredo interior empolga-me: é fogo e silêncio. Ou mágoa. Por elas, pelas palavras, vivo por outros homens e por outras mulheres. Tenho quase cinquenta anos. Se o afectuoso leitor até aqui me acompanhou, despeço-me pela voz do Daniel Faria: “Guarda a manhã, tudo o mais de pode tresmalhar”.


Texto publicado no JL

sexta-feira, 18 de junho de 2010

a noite imensa

“Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta,
aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de
que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o
silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste,
com a serenidade dos teus noventa anos: «O mundo
é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.» Assim
mesmo. Eu estava lá”.

José Saramago
As Pequenas Memórias

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O jogo da vida

o meu pai faz hoje noventa anos
sonha ainda, sem o dizer a ninguém,
com madrugadas de caça: os cães
nos rastos frescos, o jogo da vida e da morte.
sonha com trutas velhas, como a que uma vez
pescou à amostra no açude das maias.

o tempo é um animal inquieto que nos aquieta.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

regresso

a manhã avança
sobe pelas árvores
como um gato novo
à descoberta do mundo.