quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rapina

bebamos a mágoa branca
do inverno
entretanto a magnólia
mostra seus esporões
falsa árvore
de rapina
em breve vai florir
o sono dos pássaros.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Conflitos entre herdeiros universais

O meu Marx há-de arrancar
as barbas ao teu Marx

O meu Engels há-de partir
os dentes ao teu Engels

O meu Lenine há-de esmigalhar
os ossos ao teu Lenine

O nosso Estaline há-de meter
uma bala na nuca do vosso Estaline

O nosso Trotzki há-de rachar
a cabeça ao vosso Trotzki

O nosso Mao há-de afogar
o vosso Mao no Yang tse

para que deixe de obstruir
o caminho da vitória

Erich Fried

100 Poemas sem Pátria

sábado, 27 de novembro de 2010

Gralhas, caça furtiva

Um bando de gralhas
sobre a escrita
cínicas como gavião
que lá das alturas
cativa indefeso perdigoto.
que procuram as gralhas:
alma redimida de palavra ferida
ou agasalho nos ramos frios do inverno?
Digo ao meu filho,
traz a caçadeira e os cartuchos de pólvora nobel
chumbo 8,
porque esta espécie de gralha maior não é
do que palavra tordo de papo ruivo.

retomo o antigo rito da caça
pela primeira luz da alva
camuflado na brancura do papel
a velha espingardada de canos paralelos
ao ombro
o cheiro da pólvora queimada entontece
já a caça foge da escrita

domingo, 21 de novembro de 2010



>Um pai natal à moda antiga, inventor de brinquedos de madeira, exausto de tantas viagens debaixo da neve, delega arte e o generoso ofício no filho. Parte de madrugada: no regresso, dias depois, só as renas e um capote. O filho, que adorava as árvores da floresta, repartia desde menino solidões, dúvidas e alegrias com um caracol. Inseparável amigo que transporta uma rara virtude: pensa, pensa devagar e bem. Certa manhã, o jovem leva as remas à clareira da floresta a beber a frescura do mundo, como sempre o seu pai fazia pelo mês de Maio. De repente, os animais suspendem o pasto, erguem a cabeça: no centro da clareira, aparece um capote forrado a pele de marta que agasalha uma menina de escassos dias de vida. A Menina é uma inesperada história de amizade, de reencontros, de subtis sentimentos que parecem não existir mais entre as pessoas. Uma história também de amor pelas árvores e por outros seres da floresta. A dado passo, uma dúvida sobressaltará o leitor: o que é feito da mãe do jovem pai natal?

ed. Caminho das Palavras

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

[romã]

Granada a clara, que seca roupa
ao luar, romã entreaberta
que sangra e chora
(pela boca da ferida) o seu poeta.





Jean Cocteau

sábado, 6 de novembro de 2010

Animal faminto

as palavras
o seu olhar silencioso
de animal faminto
sua leveza interior de árvore em repouso.
há palavras assim
e de algumas me fiz
amigo - sacio-lhes a fome.

a fome das palavras
é doce como um fruto.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

...ET VOILÀ


Un marin a quitté la mer
son bateau a quitté le port
et le roi a quitté la reine
un avare a quitté son or
… et voilà

Une veuve a quitté le deuil
une folle a quitté l'asile
et ton sourire a quitté mes lèvres

...et voilà

Tu me quitteras
tu me quitteras
tu me quiterras
tu me reviendras
tu m'épouseras
tu m'épouseras

Le couteau épouse la plaie
l'ar-en-ciel épouse la pluie
le sourise épouse les larmes
les caresses épousent les menaces
… et voilà


Et le feu épouse la glace
et la mort épouse la vie
comme la vie épouse l'amour

Tu m'epouseras
Tu m'epouseras
Tu me'epouseras.


Jacques Prévert

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

As mãos, a alma





A decrepitude atirou-os para o armazém do Farrapeiro de S. Vicente de Paulo. Eles que foram moda – a moda – chegavam ao fim. Nus e resignados, silenciosos como árvores. Como velhos sozinhos. Alguns amputados no corpo, todos eles vazios de alma. Personagens sem nome na aluvião do devoluto. Do que foi vida e, graças a generosidade arcaica (será caridade?), se liberta do lixo. De ser resíduo sólido. Os manequins aportaram ali, cediam uma réstia de alvura à obscuridade do lugar. Entre camas e televisores a preto e branco, entre cadeiras de rodas e brinquedos, enxergas e discos de vinil. Livros, os livros, silenciosos também como bicho-de-conta, encontram-se ao fundo, quase emparedados por enormes guarda-fatos expulsos de casas de harmonioso pé direito. E foi uma visita aos livros, cansados e com marca de posse, seja o primeiro tomo das Obras Escolhidas de Lenine ou as Reflexões sobre a Graça, de Charles Journet, que permitiu o inesperado encontro com a despojada família. O negócio fez-se no momento; no dia seguinte, os manequins iluminavam, com a sua tímida presença, o único espaço habitável da sede da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto – também ela, nessa altura, de alma magoada, entontecida pelo burburinho das pombas.

Resgatados da aluvião do devoluto, quedaram, contudo, no mesmo melancólico silêncio. O corpo é o lugar onde a “alma se exila” na sua passagem terrena, por isso os crentes vêem a morte como “dádiva” singular. Mas os manequins estavam mortos e de alma nunca fruíram – o seu corpo sempre foi corpo desabitado. De vida careciam, de suave luz interior: uma listra negra colada em redor dos ombros, pedaço de jornal a agasalhar a nudez, pingos de tinta como chuva colorida no rosto. A mão, as mãos, o gesto. A arte. E eis as distantes criaturas tocadas pelas paixões da alma. De súbito, cheias de indecência e de pudor. Sedutoras e fugidias como seres marinhos. Dóceis como palavras humildes. Esta prodigiosa transmutação (o quase-lixo vira obra de arte) deve-se a Jaime Isidoro, Armando Alves, Acácio Carvalho, Alberto Péssimo, Fernando Lanhas, José Emídio, José Rodrigues, Manuela Bronze e Roberto Machado. Foram eles, num gesto solidário a vários níveis, que reinventaram a alma, múltipla e a cores. Ao grupo junta-se outro nome: Augusto Baptista. Para que dúvidas não restem, com engenho e rigor, fixou alguns momentos do momento criativo. E, mais do que isso, as suas fotografias mostram-nos o diálogo do criador e da criatura, da criatura e do criador. Idioma pleno de silêncios, mas límpido, perceptível como árvore florida. A mão, as mãos, muitas mãos: eis os manequins transfigurados. Eis os manequins com alma, à procura de novo abrigo – não podia encerrar aqui a inesperada aventura.

As mãos, a alma termina, no dia 23 de Outubro, com o leilão das obras de arte. Os manequins, já se disse, saíram da aluvião do devoluto: merecem pois um lugar limpo, sem mácula. A verba proveniente da iniciativa será aplicada nas obras da segunda fase da requalificação do edifício-sede da nossa Instituição, que esperamos iniciar em breve.

Antigo dirigente da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Jaime Isidoro aceitou sem a mais leve das hesitações participar, graciosamente, como todos os restantes artistas, neste projecto. Deu alma, bem luminosa, a um dos manequins. Entretanto, partiu. Está presente a obra, ele por certo não virá. As mãos, a alma é também tributo, uma sentida homenagem a Jaime Isidoro. De pequenas dádivas de constroem os grandes sonhos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A palavra redimida

CACHIMBO
(a andré breton)

… isto é um poema!


OFÍCIO DE POETA

longínquo corso de palavras.


PÃO FRESCO

uma fisga
apedrejando a memória
no mais longe de mim
o cheiro a pão fresco
que a mãe cozia
antes do sol nascer


MANHÃ

verde conspiração
de luz e silêncios.





ATITUDE PERANTE A MORTE


Os lisboetas
exibem uma atitude amorosa
perante a morte
basta por exemplo termos
em linha de conta
o cemitério dos prazeres.



Á SAÍDA DO CAFÉ

dentro do carro funerário
um caixão e
dentro do caixão um morto.

o motorista sorria para o homem
sentado a seu lado.


NOITE
as árvores repousam
do seu cansaço verde
cingidas ao sono dos pássaros
depois vêm as estrelas
e fazem os ninhos
dentro da noite.

[escritos dos anos oitenta do outro século]

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Vida feliz

Até à data a ninguém ocorreu escrever
um livro de como passou a vida feliz.
E já que o homem russo está acostumado
a inventar a sua vida e não a edificá-la,
é muito provável que um livro sobre a vida
feliz o ensine a inventar a felicidade.




Máxino Gorki

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O narrador no funeral

Um de Dezembro de dois mil e nove. Chuva finíssima, como no dia em que a avó abandonou a casa térrea, persistente e fria. Regresso imprevisto. A capela, sem beladonas nos altares porque não é o seu tempo, está cheia. Há gente, como nas missas da minha infância, a seguir o ofício divino fora do templo, debaixo de chuva. Gente que a memória passa as mãos no rosto e limpa as marcas para eu reconhecer. Como folhas da nogueira a encobrir a água do poço e tu metes as mãos na água fria, apartas a opacidade – o gesto, é certo, agita, turva as águas, mas há um instante de limpidez, uma fissura que te permite adivinhar o transcorrido. Do interior da capela chegam cânticos, coro de mulheres. As vozes avoaçam pelo meio da chuva, quem escuta, quem acolhe, indefesas como pássaros tolhidos na neve, as sereníssimas palavras,
Feliz a morte dos que morrem no Senhor
Guardo para mim este fragmento de melancolia esperançosa. Ao funeral da avó, já o disse, não fui: a mãe, porque eu era menino apartou-me do último lanço de tristeza. Não houve cânticos, por certo, no funeral da avó – alguém teria a coragem de juntar alegria à sua morte? O narrador, persistente, ou presciente?, abre-me um livro. Comprei-o há pouco no alfarrabista da Rua do Bonjardim, é um livro de conselhos às mulheres, da autoria do arcediago João B. Lourenço Insuelas (impossível omitir o nome). Abre-o ao acaso: “Para as solteiras pobres, existem dois caminhos gerais: o serviço doméstico (criadas) e as fábricas (operárias). Devem amar o trabalho, com lealdade, diligência e competência. Se tiverem as qualidades necessárias, e devem sempre esforçar-se por aumentá-las, bem podem criar-se um ambiente favorável, que tornando-as simpáticas e prestimosas, muito concorrerá para lhes garantir o suficiente para viver, acompanhado de certa estima e carinho, que, até certo ponto, saciam a sede de amor e estima, que existe no seu coração. A causa do infortúnio de muitas mulheres é a sua falta de amor ao trabalho e a sua quase completa escassez de virtudes morais”. Em primeiro lugar, a escrita do arcediago – a todo o momento uma vírgula trava, a extremosa dona de casa hesita, abranda na simplicidade do pensamento e seus suaves alçapões. Há livros cruéis cheios de bondade, o que o narrador folheia ao acaso pertence a essa literatura das palavras sem alma. Deixemos o arcediago em sossego com o seu Amor Mais Alto, Oficinas Gráficas “Pax”, Braga, 1948, exumados da solidão dos livros sem dono. E os livros sem dono são cães velhos abandonados longe de casa: uma tristeza imensa embacia-lhes os olhos.

A onda

Vão maus os tempos d’agora
Para cousas de poesia;
Cresce a onda: a prosa fria
Tudo invade e nos devora.

Quando surge a luz da aurora
Ninguém ouve a cotovia,
E o trovador de algum dia
Canções d’amor já não chora.

A musa veste á burgueza,
Apolo frisa o topéte,
Fuma á porta da Havaneza;

A vindima não promette.
O Pindo causa tristeza...
Adeus, ma tendre musette!

JOÃO PENHA

domingo, 29 de agosto de 2010

As árvores

A preto e branco, as árvores perdem a memória. Vem o Outono e rouba-lhes o nome, o coração vegetal. Podes ver, a preto e branco, uma bicicleta, um rosto, um pássaro colorido – as árvores não. Carecem de luz, as árvores: essa claridade estreme que só os teus olhos distingue, essa luz que amadurece os frutos e burila as pedras.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

La luna

Hay tanta soledad em ese oro.
La luna de las noches no es la luna
que vio el primer Adán. Los largos siglos
de la vigilia humana han colmado
de antigo llanto. Mírala. Es tu espejo.

Jorge Luis Borges

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Da Vielhice

Para aqueles que não possuem, eles próprios,
qualquer recurso para viver bem e com felicidade, para esses toda a idade é penosa. Para aqueles que reclamam para si todos os bens, para esses nenhuma coisa, que a necessidade natural possa trazer, pode ser vista como um mal. Neste género está, em primeiro lugar, a velhice, que todos buscam alcançar e, quando a alcançam, deploram-na.

M. Túlio Cícero

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

água de lima

a secura dos campos que foram verdes
verdes ao longo de gerações
o milho regado ao pé
pela levada da aldeia
o murmúrio da água de lima
a correr pelos pastos.
do minho dessa imagem do minho
que te persegue como um
vício absurdo quase nada resta.
Falam-te de chegas de bois
nos campos da lama
na festa de s. brás
e tu vês a mina dos escuros
onde a mãe lavava a roupa
morta também de secura: o maior ultraje.

sábado, 31 de julho de 2010

Cacela

na noite cálida
o silêncio dos gatos
de cacela
protegido pelo rumor
da buganvília.
nada os perturba
nem o frenesim das cigarras
nem a delicadeza dos turistas.

domingo, 18 de julho de 2010

Patos bravos

agora o verão
nenhuma palavra caída
no lugar de lapela


nunhum lugar remoto
que desperte a memória
os patos bravos
na fímbria da noite
voam para o sul.

A cidade

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Açafate ou tangerina

dá-me só mais uma rima
para a travessia do verão
pode ser brisa marinha
refresco de limão
ou a sombra de choupo
uma rima pela tardinha
uma rima
só mais uma rima
a água doce e fria
do rio da minha terra
açafate ou tangerina
paúl rente à serra
dá-me só mais uma
porque agora é verão
cresce a abóbora-menina
sobressalta o coração
uma rima infantil
levo-a no açafate
ao lado do pão
e do vinho no cantil

segunda-feira, 28 de junho de 2010

azul como uma laranja

Apaga o cigarro. O gesto vagaroso ajuda-o a clarear algo que o intriga. Já o avisei, fumar em toda a parte é privilégio antigo. Sou um homem anacrónico, responde. Hoje não o adverti. Noto-o inquieto. E isso espanta-me. Mesmo em situações adversas, vivemos várias, ele mantém a serenidade.
Temos de pedir autorização.
Sem esperar por comentário meu, retira do envelope a fotocópia de um trecho manuscrito, lê: “a operação irá mudar o nosso futebol, estamos próximo de alcançar esse desígnio histórico. O presidente, o director desportivo e uma outra pessoa conhecem o plano – áspero golpe no dragão”. Outro cigarro lhe rola nos dedos.
Presidente, director desportivo
E o outro?
O nome do outro virá à rede.
Acende o cigarro. O fumo atravessa a fina luz e rouba-lhe um pouco de azul; a luz do Sol, na sua infinita transparência, esconde o arco-íris. Belo dia de Fevereiro, lá fora o florido encanto das magnólias. É um gosto ler a generosidade das árvores. Agora pondero a palavra do meu camarada.
“Um rude golpe …”.
Que fiabilidade se atribui a fotocópia e meia dúzia de garatujos? Pode ser patuscada, e mordemos o isco. As alegadas vítimas usam-nos para investigarmos os outros. Na porfia de raposa, bem sei, por vezes cai a alcateia. Apaga o cigarro, uma pequenina nuvem sobe devagar até se diluir no tecto.
A carta foi enviada de onde?
Lisboa. Pressinto, o plano é grave.
Que juiz despacha com base em intuições? É preciso indício forte, e nós temos um convicto pressentimento.
Alheio à minha palavra, redige o pedido. Como ele diz em voz alta o que escreve, conheço o fundamento: “… tenebrosa conspiração, caso não seja desmantelada a tempo, distorcerá a verdade do futebol pátrio”. O requerimento segue por e-mail. A rapidez de procedimento, na birrenta justiça, permite-nos sair antes do meio-dia, descer a pé à Baixa. Pelo caminho, compramos A Bola e O Jogo. Pelas entrelinhas, diz o meu camarada, também se chega à matilha. Essa forma de escrever e ler, digo, era no tempo da ditadura – os censores até a meteorologia vigiavam, não fosse súbito nevão significar borrasca do reviralho.
Chegamos à Avenida do Aliados, despovoada de árvores. Imagem agreste, dói tanta pedra. O presidente e o primeiro-ministro discursaram neste lugar no 31 de Janeiro, abertura do Centenário da República. Dia frio, chuvoso.
Ouviste o presidente?
E nada lembro. Nos discursos há esse lado bom.
Eu retive palavras do Torga, ditas pelo presidente. “Quem morre pela liberdade todos os séculos, é capaz dos mais espontâneos entusiasmos”.
Do Torga conheço o diário. Bichos, não é?
Uma cidade herdeira desta história, do passado e do devir, jamais será alvo de conspiração sombria.
Não te percebo – diz o meu camarada. E pára, no meio da praça, a rever talvez conhecimentos literários.
Bichos, pois Bichos é livro do Aquilino. Grande caçador de perdiz.
Sorrio. Ele entende bem o meu sorriso.
Se Torga fosse da caçada dos policiais, não trocaria os títulos. Tu sabes. És testemunha, António.
Eu já tenho nome. Almoço no Solar da Conga. Sopa saborosa, o resto mantém a tradição na casa da perdiz na cataplana, durante a época venatória, por encomenda restrita. No pátio interior, pela porta envidraçada, vêem-se mesas postas.
No catálogo dos frios, os de Fevereiro, os mais ruins de todos, mordem pela calada. Entram no corpo e por aí se aninham como animal à procura da morte.
Percebo, António.
A tal sopa de legumes, debaixo de tecto. Bacalhau no forno, batata miúda, e legumes salteados. Uma Esteva. Tinto, tinto cai sempre bem – até com hóstias da missa.
Depois do café, dei uma vista de olhos no Jogo, ele deteve-se um bom pedaço no outro desportivo.
Este Di Maria comia-me a côdea!
Agora sou eu que te não entendo.
O meu camarada admira-se.
Olha, olha, o leitor do telúrico desconhece a expressão! Assim falavam os caçadores dos bons cães alheios.
Nos alçapões das entrelinhas…
Nada. Os desportivos parecem jornais de economia. Transferências, valor da imagem, passivo de milhões… opulência desmedia, António.
Por volta das quinze horas, havia despacho. Surpreendente a destreza das novas tecnologias, a pressa do magistrado. Pressentimentos fortes, paixões que vulnerabilizam – talvez seja isso.
Podemos armar o laço, António!
Durante a tarde tratámos do processo. Falámos às operadoras, testámos a aparelhagem, quedámos à espera de conversas comprometedoras. Nada. A armadilha fica accionada todo o tempo. Vou de metro para casa. A Bola, raramente a vejo, como leitura dos quarenta e cinco minutos de viagem. Di Maria, paro na página do Di Maria… Borges, se voltasse ao mundo dos vivos e da luz, talvez lhe destinasse um poema. Nos olhos de Di Maria foge tristeza longínqua. Épica. Os poetas pouca importância concedem ao futebol. E é pena. Como tudo seria diferente se a bola fosse azul como uma laranja. Fecho o jornal, limpidez nas entrelinhas: a grande conspiração será delírio do meu camarada, validado por magistrado, zeloso da pureza do futebol pátrio. A pá e picareta, arrotearam o campo da bola. No tempo da fome, no tempo da ditadura. O Campeonato do Mundo de sessenta e seis, os golos de Eusébio à Correia, “cinco a três foi a conta que Deus fez”, cantávamos, o futebol a hiperbolizar o orgulho da pátria triste! A modalidade crescia. Neste contexto de fogo nacionalista, o presidente da junta anuiu: talhou-se parte de um terreno baldio, só tojo dava. E um grupo de voluntários, homens do rude trabalho braçal, aplaina a terra maninha em menos de dois meses. Era Verão, uns trabalhavam de dia, outros durante a noite.
O presidente da junta e o padre abençoavam a empresa. Um lavrador oferece os eucaliptos; o carpinteiro, trabalho e feitio e assim surgiam as robustas balizas. Outros agricultores mandam pelos criados garrafões de vinho, do que a trovoada revolve dentro dos pipos, por isso amargo como fel. Sob a rudeza do Sol, os trabalhadores bebiam-no com imensa alegria. E o vinho atiça-os, cobrem-se de brios, picados em despique. A notícia atravessaria a longura do mar, chegaria ao Brasil pouco antes do emigrante retornar às origens. Daí, acaso generoso, surge o equipamento. À Vasco da Gama. A oferta e uma condição: o benemérito exige entrar em campo alguns minutos. Jogar equipado, bola de capão, no rectângulo mágico, minimamente nivelado, balizas e redes, era o sonho maior de qualquer mancebo. O brasileiro teria idade de avô, todavia, isso não o impediu de alinhar de início, perna seca e esbranquiçada, parecia até que naquele país distante o Sol, de tão escasso, pertencesse à categoria dos bens preciosos. O país irmão era sombrio. E ele, o brasileiro, louco por futebol. Orgulhoso: a mãe de Pelé foi cliente da sua padaria. Como pôde pobre mulher gerar filho tão talentoso? Proferia o benemérito, no largo. Ufano, no meio da roda cerra de gente carente de notícias extraordinárias, que o privava de colher a mansa luz da manhã. Vício do seminário, talvez, o padre de igual modo se perdia pelo esférico e lugar teve, quem lho negaria!, no onze inaugural, camisola 10, chuteira de travessas de sola para reforçar a aderência. Areia grossa, áspera, florescia em certas partes do recinto e lixava a pele dos desafortunados que por aí caíssem. Eu vi a bola surgiu redonda, limpa, na ponta da bota do emigrante. Deslumbra-se perante dádiva tamanha: espaço aberto, baliza a distância confortável, defesas fora da jogada, porque o padre, vício de seminário, os finta, piedosa mestria, e desmarca o bem-fazente, número 11 nas costas: quem oferece um equipamento completo pode dar largas a seus caprichos. Naquele tempo, bom guarda-redes teria de jactar-se do rótulo de amalucado, pois só assim mergulhava no saibro duro, alheio à brutalidade dos pontapés do inimigo; no sector defensivo ficavam os medíocres, gordos ou estropiados. Missão única: abalroar o adversário, seguindo a velha táctica de “até ao joelho é tudo bola”. Os da linha média não tratavam a bola por tu, mas para essa convivência caminhariam. Por fim, os avançados, a fina flor, no lugar de deuses como Eusébio e Pelé. O brasileiro reclamava esse posto, compatível à sua dignidade, de contrário daria as camisolas a lavradores para os seus jornaleiros usarem nas vindimas e os calções na pisa das respectivas uvas. E deslumbra-se, tanto que julgando ter menos quarenta anos ensaia um remate à laia do filho da pobre mulher que lhe comprava pão… Abeira-se o meu apeadeiro, esqueço A Bola sobre os gratuitos cansados.
O dia nasceu encrespado pelo meio da névoa. Chuva, muito vento, pela manhã. A beleza das magnólias ressente-se da intempérie, digo ao meu camarada. Ele tinha chegado primeiro, e verifica a armadilha: desarmada, sim, mas sem o passarinho de asa levemente erguida, olho revirado. Ar e vento, o arame impulsionado pela mola bateu em seco na tábua. Ar e vento. Falaram, porque falar ao telemóvel é vício absurdo, silêncio ruidoso da contemporaneidade.
A truta namora o isco. Dissipada a dúvida, investe voraz.
Dúvida é ignorância de gente, António. De qualquer forma, há mensagem cifrada. Todo o mundo agora se abriga na metáfora.
Falam de fruta?
O meu camarada sorri.
António, ouve esta transcrição:
“Viva, Rui! Como vão as coisas?”
“Pensei no assunto, presidente. Faz falta ao grupo, ao espectáculo… como as cerejas no Maio”.
“Eu sabia, você… mais barato que brasileiro em segunda mão. Falamos no centro de estágio, antes do treino… Não se esqueça, dê de comer aos passarinhos!”
Ouviste, António.
Ouvi, há fruta.
Que fruta?
Cerejas.
Isso não tem importância. Dê de comer aos passarinhos… Temos de partir daí, deste enigma. Onde se viu líder de clube, grande ou modesto, lembrar ao director desportivo coisa desta natureza.
A razão agora está do lado do meu camarada, que vou nomear a partir desta precisa linha para o conto não parecer excessivamente político.
Pois, Raimundo: não é conversa de passarinheiros… O gato escondido, barbas de fora, andará nas cerejas do Maio.
Final da Taça dos Campeões?
O futebol esbanjou a vernaculidade, digo, para a dúvida amadurecer. Na investigação, ensina a experiência, o de vagar é a maneira mais célere de se atingir resultados aceitáveis. Raimundo sabe isso tão bem como eu.
Engravatou-se, António. O desporto do pé descalço virou matéria de análise erudita.
Raimundo, e o cantor no trio de comentaristas? O cantor desencantou-me.
Estamos na sociedade do apareces na pantalha ou não existes.
Cessa a borrasca. O sol enxuga a acalmia. Perfeita. A fragilidade das flores da magnólia resiste à fúria do vento, ao açoite da chuva. Não era ainda o tempo de cair por terra, de virar húmus e, por secretíssimo enredo, de novo seiva, flor ou folha. Sobre a minha meditação vegetal expele o fumo do cigarro. Fumei anos, de que autoridade me arrogo para lhe embargar o prazer?
O futebol mudou rápido, Raimundo. No primeiro jogo que assisti, partida inaugural do campo da bola da minha aldeia, morreu um dos jogadores. Ele acabava de marcar o golo, o primeiro golo numa baliza com redes na terra que deixou ainda moço empurrado pela penúria. Do outro lado do mar, vendeu pão a muita gente, e entre esse povo estava uma pobre mulher que o filho, Edison Arantes do Nascimento, havia de retirar do olvido. A bola redonda, sem galhos, na ponta da bota... o padre limpou o lance, o chamado drible checo, sabes o que isso é?, eu também não, soa bem, sugere jogada de xadrez, os defesas apressam-se sôfregos, cães famintos atiçados pelo tépido odor de vísceras, e ele, o sacerdote, perna lanuda, numa nesga, aplica-lhes o drible checo e, logo logo a bola, com conta peso e medida, e dito assim se evoca o grande Alves dos Santos, roça a ponta da bota do brasileiro. Um sonho. Só nos sonhos as coisas são assim perfeitas. Quis rematar à Pelé, ele, 11 nas costas, multidão em silêncio, atónita: à espera que a bola surdisse veloz como andorinha numa manhã de névoa. E ele reuniu a força que podia, Raimundo, e arremessou o pontapé: saiu a bola rente ao areão, mesmo maluco guarda-redes algum teria o arrojo de lhe travar a viagem triunfal. Entrou junto ao poste, o povo ergueu os braços como árvores de alegria. Breve júbilo. O ponta de lança caia desamparado, sem sentidos. Morto. Rebentara-lhe a veia do pescoço, corria entre a multidão comovida.
Na manhã do dia seguinte, quando cheguei, Raimundo lia em silêncio transcrições de duas capturas. Armadilha accionada, todo o tempo é pouco para esta veação. Olha para mim, impaciente.
Os tipos fogem-nos das mãos como enguias. Foram alertados… O presidente relembrou ao director: não esqueça os passarinhos. A partir daí, mudou o rumo da conversa.
Ouve: “...a melhor forma lá chegar é por via do editor”.
Agora o presidente: “É dos nossos?” A segunda escuta, às 23.45 de ontem, é a resposta: “Ele é bom pai de família, discreto. O outro, amanhã, vai convencê-lo a levar-nos até ao homem. Que é uma fera, mas entrando o editor na jogada fica tudo facilitado… Operação de grande melindre, se...”.
“O Rui deu de comer aos passarinhos?”
“Agora mesmo, os canários...”. De que jornal será esse editor. Do Jogo?
Há editores fora dos jornais, Raimundo.
Mais emaranhado se torna o caso. Como chamava o jogador que morreu em campo?
O Fehér.
Não.
O Pavão,
O da tua terra.
Era o Zeferino brasileiro. Gabava-se de ter espalhado semente no Brasil, vários filhos havidos de diferentes mulheres. Aqui chegou sem família. Talvez o homem exagerasse na virilidade. E podia fazê-lo: certo e sabido, ninguém iria a terras de Vera Cruz testar a veracidade de suas conquistas ou a qualidade do seu pão.
António, se o intermediário é livreiro, que será o outro?
Um jornalista. Ou ex-jornalista, agora no papel de assessor. A mobilidade nesse ofício é alucinante.
Nas semanas seguintes nem sequer um “Olá, bom dia”. Emudeceram. Esquivo silêncio, alguém os terá avisado. Raimundo pede-me para saber quantas editoras existem na cidade.
Seguiremos o rasto por outros atalhos.
Se a cidade tudo perde, as editoras também abalaram na enxurrada. Todavia, quedaram os anéis. Os verdadeiros editores resistem, mesmo nada tendo capaz de conter a voragem.
Li, há dias, uma notícia de livros guilhotinados.
Na Revolução Francesa, António?
Como?
A guilhotina.
Um grupo editorial adquiriu várias editoras. E, agora, abate milhares de livros. A cruel da palavra denunciou-a um editor. Como se chama o homem?
Vê-se já no Google… “livros guilhotinados editor”… Cá está: “… livros da autoria de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço e Vasco Graça Moura, Urbano Tavares Rodrigues foram destruídos recentemente. A acusação é do editor...”.
Quem é a personagem?
Raimundo acende o cigarro. Sai do Google, inicia o pedido ao juiz. Como é seu hábito, dá voz, sonoridade às palavras antes da escrita, “… por isso carecemos de alargar o universo das escutas ao alvo J. da Cruz, editor, conhecido pela sua grande paixão do futebol, tanto que publicou em Portugal A Angústia do Guarda Redes Antes do Penalty, de Franz Kafka…
Peter Handke, Raimundo!
Pois, tens razão: e como se escreve?
O pedido seguiu por e-mail. Apaga o cigarro, levanta-se.
Onde poderei comprar A Angustia do Guarda-redes Antes do Penalty? O título encanta-me há anos e só agora, por causa dos passarinhos, me apetece ler. Ou tentar. Tu sabes, até à última página só os policiais do catalão.
Se a memória não me falha, nos anos oitenta saiu uma edição do livro, na Relógio D’Água. Não o li até ao fim, é uma história perturbadora. Eu sei, polícia deve apresentar-se imperturbável, como os polícias dos filmes: destemidos, tocados pela imortalidade.
Na livraria Latina talvez se encontre – digo.
Fim de manhã luminoso. Saímos para a rua. Em homenagem a Torga (ou a Aquilino?), fomos ao Antunes, no rasto da perdiz, de agradável paladar, na época ou em pleno defeso. Raimundo, neste restaurante bebe espadal, uma espécie de vinho, rosado e leve, um dos traços identitários da casa ao lado do pantagruélico pernil de porco assado. Novo pressentimento. O meu camarada pensa descobrir, durante o almoço, a pista do “desígnio histórico”. Pela intuição dele, enfim, a comunidade de criminosos, corruptos e outros da mesma família prosperaria eternamente impune. Palpite de polícia bater certo é como ganhar lotaria sem jogar. Foi a perdiz, e ele ainda retouçou uma rabanada, outra especialidade da casa sem época de defeso. Retine o telemóvel do Raimundo. Obriga-o a acústica do salão a sair da mesa; fuma um cigarro na rua e volta com a notícia: luz verde do tribunal para vasculhar a palavra do editor.
A escolha minha, também tenho direito a premonição e a segui-la até ao fim. No dia seguinte o almoço foi no Buraco. Pela manhã havia duas conversas do editor. A primeira sobre poesia com um advogado da cidade. O editor convidava-o a organizar uma antologia poética. E o homem de leis “muito honrado” se sentia. “Não esqueça o Guillevic”, disse o editor. “Quem!”, disse o advogado. Na segunda chamada, alguém que não se identifica marca encontro no Café Progresso. “O senhor não se lembra de mim, quando eu trabalhava nos jornais, falámos uma ou duas vezes, foi há muito tempo… ”. No Buraco pedimos filetes de cherne, do melhor que há na cidade e arredores dos arrabaldes. Duas sopas, peixe a singelo não segura o vinho e nós somos como o Jacinto: tinto, sempre tinto. A minha premonição consistia no seguinte: na diversidade de clientes (remotos apoiantes da candidatura de Humberto Delgado, lojistas, arquitectos e gente dos tribunais) acomodada em mesas tão próximas, iria saltar uma palavra, a palavra que nos levasse ao “desígnio histórico”. Fácil de ver, o acaso na investigação policial é heresia. Almoçámos bem. E, desta vez, o café seria bebido noutro lado. Duas ou três mesas vazias, ocupamos uma e pedimos o café. Café de saco. Estaria ali o editor? O encontro marcado para as quinze horas, faltam vinte minutos. De forma discreta, percorro com o olhar, uma a uma, as mesas. Ao fundo, está um homem sozinho, com idade, se é ele a pessoa que procuramos, para ter editado neo-realistas da primeira vaga. Entra agora um sujeito, de meia-idade, irresoluto, procura alguém.
Raimundo, e o livro?
Qual livro?
A Angústia do Guarda-redes…
António, devias ter avisado. Vinte páginas e caiu no arquivo morto… Olha, o soldado desconhecido está a passar-lhe um cartão.
Os dois homens levantam-se. Cumprimentam-se na rua, seguiram caminhos diversos. Raimundo paga os cafés no balcão, saímos.
Vinte páginas…
Metade, António. Não gosto de entristecer pelas histórias dos livros. Que achaste do soldado desconhecido?
É o outro, sem dúvida.
Gosto de te ouvir assim. Um verdadeiro agente da autoridade jamais declina perante a dúvida. A dúvida, já o disse, é ignorância de gente ou passatempo de filósofo. Faltou-lhes tempo para gizar grande conspiração – a ratoeira nos dará notícia segura.
De novo na Baixa, na avenida dos discursos do 31 de Janeiro. Entramos no metro. Viagem breve. Pedimos para falar com o treinador. “O professor não tem encontro nenhum hoje agendado”. Raimundo identifica-se. “Sendo assim”, diz a relações públicas, “o professor só poderia falar na presença do seu advogado…”.
Eu não tenho advogado, disse o Raimundo.
O seu, dele, professor…
Agora a minha vez de entrar na conversa.
E se a menina tivesse a amabilidade de perguntar a opinião do professor? Ele não é suspeito de nada, coisa nenhuma. Vimos aqui, se quiser, pedir-lhe, a ele, professor, ajuda.
Após vários telefonemas, a menina chama um segurança.
Leve os senhores.
Preferimos a sua simpática companhia. Polícia não precisa de segurança – diz o Raimundo.
São as normas da casa… – Faz um gesto, o segurança volta à base. A jovem acompanha-nos ao local.
O treinador está sentado. Levanta os olhos à nossa chegada, e logo os baixa como já estivesse farto de nós.
Tenho pouco tempo.
Precisamos da sua ajuda.
Diga.
O rendimento dos seus melhores jogadores, nesta época, é aquele que esperava? – pergunta o Raimundo.
O senhor é polícia ou jornalista da Bola?
Se fossem desviados pelo rival, ficaria espantado?
Atónito estou eu com as suas perguntas. Por favor, tenho assuntos interessantes a tratar…Enfim, o início do campeonato não foi o mais desejado… De qualquer modo, continua tudo, ouviu?, tudo em aberto.
Aprovava o Di Maria no seu onze?
O senhor também é…
Sim, também não sou jornalista da Bola disfarçado de inspector da Judiciária. Se nos ouvir poderá ganhar o dia, ou até o campeonato.
Não tenho mais nada a dizer.
Levanta-se, ágil. Dir-se-ia gesto incompatível com a idade. Chama pelo telefone interno a jovem das relações públicas.
Mande o segurança aqui, para acompanhar… Como? Então venha você.
Regressamos ao metro, mãos vazias.
Quando as coisas começam a correr mal, os treinadores ficam amargos. Tinha a melhor impressão deste cavalheiro.
Vamos pô-lo sob escuta.
Pressentimento, Raimundo?
Serão os jogadores o ele…
E Transferência de treinador é “um rude golpe”?
Passamos o dia seguinte a ler as transcrições de seis escutas. Muito comprometedoras, considera Raimundo. Tanto que abdicou da pista do professor. Numa delas, o director desportivo informava o presidente do encontro entre o editor e o soldado desconhecido. “A princípio torceu o nariz, depois achou a iniciativa muito criativa. Contudo, o êxito do convite, da proposta, depende dos humores do homem”. Noutra escuta, deveras importante para nós, o presidente diz ao director o local da pernoita. “Rui, é uma jogada de mestre”.
Pombas e gaivotas, vasto bando, disputam um pedaço de pão duro; o gorjeio agreste das aves marinhas faz eco na cidade despovoada. Depressa vencem a faminta resistência das pombas. De vigia à porta do hotel O Porto dorme, ainda dorme. Até dentro do automóvel o frio se sente. Frio da alvorada e seu rigor que a pobre gente conhece há gerações; Raimundo dormita, ou parece, como se o sono o aquecesse. A segunda partida no campo da bola de igual modo ficou aquém dos noventa minutos regulamentares,
Após um drible checo…
Não dormes.
Ó António, tu sabes, nunca dormi em serviço. Foi o padre que morreu?
A morte não levou nenhum dos jogadores. Por pouco. Uma entrada mais dura, como agora se diz, por parte de um forasteiro deflagrou em brusca e sangrenta cena de pancadaria; depressa o fogo da luta alastrara à assistência e então foi uma desavença colectiva. Quando os dois pesados agentes da GNR chegaram toda a gente havia molhado a pena na equipa visitante, de uma freguesia vizinha, e na tímida claque. Eu miúdo, teria seis anos: visão de fim do mundo, corri para casa e o medo era tanto que me gelou as palavras. A mãe, viu-me tão pálido, fez um chá de erva-cidreira. Enquanto a água levantava fervura, pegou-me ao colo – o doce gesto aquietaria meu coração. Olha, olha, quem lá vai, Raimundo!
O soldado desconhecido…
A cidade enche-se de sons; os autocarros despejam gente, os automóveis sufocam o espaço. O homem entra no hotel. Daí saiu, duas horas depois na companhia dos dirigentes. Seguem os três no mesmo automóvel, conduzido por um indivíduo desconhecido. O trânsito intenso permite-nos tê-los a distância segura; dirigem-se para a marginal, na direcção da Foz. Bonita manhã de Março; o Douro suave, livre do pesadelo das enxurradas de Inverno. Marginal, menos trânsito, o carro que seguimos faz uma ultrapassagem; entre nós agora existe outra viatura. Raimundo, na primeira oportunidade, volta a colar-se à comitiva presidencial. O director, óculos de sol, volta-se como se pressentisse a perseguição, e poucas centenas de metros além o automóvel abranda. Discretos, como convém, paramos mais à frente: saio, deixo Raimundo a estacionar. Vejo o editor a cumprimentar os homens; sem perder tempo, avançam uns metros, o editor acciona a campainha. Passeio Alegre, o mar da Foz, luzidio como pêlo de animal selvagem, bebe a caridade da manhã. Raimundo vem ao meu encontro.
Para onde foram?
Se te disser, não vais acreditar!
Aplicaram-nos o drible checo, António...
Di Maria bem merece. Talvez o Borges, se fosse vivo, por livre impulso ou, o mais provável, por um punhado de... qual é a moeda da Argentina?
Não sei.
Borges, sim, iluminaria a tristeza épica do seu conterrâneo.
Raimundo acende agora o cigarro que há muito segura entre os lábios. De repente, um carro da polícia pára, brusco, rente aos nossos pés; estaciona no passeio: dois agentes impelidos pelo fogo da urgência. Primem a impaciência no botão da campainha: uma mulher abre a porta, denuncia preocupação no semblante.
A tropa macaca fintou-nos? Não podemos ficar parados: a investigação é nossa, António!
Recomendo calma. A porta da casa reabre. Sai o presidente, o director, o ex-jornalista e os dois polícias. O carro, que não havia achado espaço para estacionar, aparece. Entram, rosto fechado, batem as portas com indelicadeza, o automóvel parte a grande velocidade. Raimundo aproxima-se dos polícias, eles dentro da respectiva viatura.
O que é que se passou?
Não é da tua conta!
E o carro irrompe também veloz, nem tempo dá a Raimundo de se identificar e dizer que só o trata por tu quem ele quer. O editor abandona agora a casa, caminha pela manhã como se nada de anormal tivesse acontecido.
Primo o botão da campainha. Outra vez. A mulher do semblante preocupado abre a porta.
O senhor hoje não recebe visitas.
Somos da Polícia Judiciária.
A mulher fica exasperada, é assim que uma calma manhã de Março vira pesadelo.
Chamei a PSP... O caso está resolvido!
Não para nós. Diga ao senhor.
Sala ampla, muitos livros e claridade. Cheia de manhã. Pelas grandes janelas vê-se o mar, manso, sem o rumor salgado. Ele continua no sofá. Um gato preto
É uma gata!
E como se chama a gata?
Disseram-me que vocês eram polícias...
Investigamos uma grande conspiração.
O homem arregala os olhos, muito claros, como dois peixes verdes ( creio que usa essa metáfora num poema). Suspende o lento afago no pêlo da gata.
Grande conspiração!
Isso mesmo, senhor Eugénio – diz Raimundo.
Proíbo, ouviu!, proíbo-o de me tratar por senhor Eugénio.
Uma grande conspiração. Pode ferir rudemente o futebol pátrio.
Eugénio sorri. Um sorriso inesperado, tanto que assusta a gata.
Miki, Miki, vem cá...
Que veio fazer aqui a comitiva?
Qual comitiva?
A que acaba de sair escoltada pela polícia.
O poeta volta a sorrir, mais solto.
Eles pediram-me para ser o autor do hino do clube, veja o desplante! E que escrevesse um poema a um Di qualquer coisa...
Di Maria.
Isso. Quem é o Di Maria?
Se Borges fosse vivo...
Você leu o Borges!
Borges não se conjuga no passado: lê-se sempre.
Sim, há coisa melhor... O Di Maria é jovem?
Não mais de vinte anos. Torso de guerreiro de Tróia, uma tristeza épica.
Eugénio levanta-se. O retrato do futebolista argentino parece ter-lhe incendiado a amargura. Volta-se para o Raimundo, a investigar, faz tempo, as lombadas dos livros.
A poesia, senão for o lugar onde o desejo ousa fitar a morte nos olhos, é a mais fútil das ocupações. Agora, diga-me: e que tenho eu a ver com a grande conspiração, senhor inspector.
Nada, foi equívoco. Pelo que vejo, o senhor desaprecia os policiais.
Descemos a escadaria até à porta da rua. “Ele virou fera”, conta a mulher que nos acompanha. “Desatou aos gritos, fui obrigada a chamar os seus colegas”. A manhã, fim de manhã agradável. Um grande passeio a pé, ondas por perto, e só depois regressámos. A multa de estacionamento presa contra o vidro pelo limpa pára-brisas. Raimundo amarrota o papel. Acomoda-se, acende o cigarro (hoje pode fumar no carro). E partimos devagar, vidros abertos – como se quiséssemos levar o frémito do mar.


in Fora de Jogo, livros de contos, vários autores, Caminho das Palavras, 2010

domingo, 27 de junho de 2010

Pequenas coisas e cães de caça

Tenho quase meio século. O tempo. O tempo ajusta as coisas no devagar de subtis ciladas. Troquei de rosto. Ramo de árvore sou e, deste ramo, outros ramos vão crescendo. O tempo. O que guardamos do tempo? Um dos meus irmãos trabalhava na construção da barragem de Vilarinho da Furna.  Um dia contou um episódio que se prendeu à minha infância como sombra comovente: houve vilarinhos que recusaram abandonar a aldeia; a água foi subindo, entrou pelas casas, dilúvio sereno, e, a dada altura, as mesas, os mochos e outros utensílios de madeira da pobre gente levitaram no meio da tragédia. Boiavam no interior das casas que a água, cativa pelo imenso paredão, ia devorando. A imagem da mesa, onde gerações repartiram o pão e a fome, agasalhei-a no meu silêncio. Seria, talvez, a última claridade na sombra comovente.   Anos depois, através dessa pequenina mácula de luz sobre as águas, escrevi Diário de Link. O que guardamos do tempo? Nada. Quase nada.
TOCAR OS LIVROS. Andei por Braga. No Liceu Sá de Miranda vi a primeira grande biblioteca da minha vida. Na escola de Vieira do Minho, Abril pintado de fresco, a preocupação era mais prosaica: reinventar espaço abrigado para meter alunos, todos os alunos. De madrugada, o direito à educação extorquía as crianças das aldeias, autocarros decrépitos a rondar a centena de passageiros. Chegávamos exaustos à vila, voltávamos com a noite a casa. A súbita democratização do ensino fechava os olhos à segurança, deixava os livros para mais tarde. Antes do Sá de Miranda, muitos livros só na carrinha da Gulbenkian quando, uma tarde por mês, aportava no largo. Mas o guardador da palavra mostrava-se tão desvelado que era um verdadeiro acto de afoiteza entrar na biblioteca andarilha. O homem, nunca o vi sorrir, impedia afagos nas lombadas, confinava a escolha a dois ou três títulos. Intimidava com a ignorância de sua autoridade. E quem ousasse requisitar um livro, teria de o devolver sem dedadas ou outras impurezas – como se as pobres crianças do Estado Novo tivessem mãos imaculadas. De acesso ínvio também os livros no Sá de Miranda. Com o tempo (o que guardamos do tempo?) caí nas boas graças do funcionário. Do remoto maravilhoso montesino, pela Páscoa, levava-lhe umas trutas, acomodadas em hortelã; no Outono, coelho bravo e uma perdiz. A amizade cresceu, frondosa como a França das tílias, pelo Maio, no recinto interior do liceu. Na vagarosa viagem pelas estantes, um dia o indicador pára sobre um livro de Sá de Miranda. Retiro-o do repouso – eu podia ter esse gesto –, leio, de pé, como gostava de fazer. E os versos, ali, à minha espera. Sempre estiveram: “Comigo me desavim, / sou posto em todo o perigo:/Não posso viver comigo/Nem posso fugir de mim”. Anos volvidos, verti um a amargura de Sá de Miranda nas páginas de A Morte do Dali. Em Braga, o encontro com José Manuel Mendes – ele professor, eu aluno. Um dia entrámos numa livraria, descemos a um piso subterrâneo (vedado ao público, creio), onde havia centenas de livros com preço antigo. No cardume adormecido, A Lua e as Fogueiras, edição de bolso, muito bonita, da Portugália. Ele ofereceu-me o livro. Cesare Pavese, a partir daí, fez-me companhia longos anos no delicado ofício de viver.
AS ÁRVORES. Talvez uma década depois, regresso à Escola de Vieira do Minho.   Edifício novo, salas confortáveis, e uma biblioteca tomada pela cegueira: sem acervo, sem a claridade dos livros, sem a paixão de bibliotecário. Inútil. Dois anos no ofício de professor incompleto. No café, perto da escola, perfazia o horário escrevivendo histórias de O Homem do Saco de Cabedal, que haveria de publicar algures no futuro. O que guardamos do tempo? Lembro-me de alguns alunos, lembro-me do inesperado regresso à política no movimento de apoio a Maria de Lurdes Pintasilgo. E pouco mais. De pequenas coisas se faz a minha vida. Fui a Coimbra visitar o meu irmão, estávamos na República O Ninho dos Matulões e toca o telefone. Para mim. No jornal O Primeiro de Janeiro havia vaga de estagiário: teria de me apresentar na manhã seguinte. Assim fiz. Agustina Bessa-Luís, a directora, recebeu-me. Breve encontro, na penumbra de um amplo gabinete, e um sorriso enigmático na despedia. Aí conheci Alberto Serpa, arrastava pelos infindáveis corredores a indignidade da velhice, com se fosse poeta anacrónico. O tempo: que guardamos do tempo? Chegava pela manhã, enfiava-se no gabinete minúsculo, envidraçado, e removia sem cessar, num delírio obscuro, os papéis. Parecia corrigir provas, parecia melhorar prosa alheia. Serpa era o responsável pelo suplemento Artes e Letras, mas a palavra iludia-o, a velhice censurava-o. Talvez fosse para ali, todas a manhãs, velar apenas pelos textos do seu amigo José Régio, que se exprimia em letra redonda e tinta azul. Vi muitos desses manuscritos na espantosa biblioteca do Janeiro, zelada pelo senhor Pereira Vale, discreto camiliano. Dois livros esquecidos na secretária; estavam ali à minha espera. Agora na redacção no Diário de Notícias. Dois livros de poesia, dois, do mesmo autor que não conheço. Abro ao acaso um deles e fico, digo assim, perdido na palavra: “o homem lança a rede/ e não divide a água”. Pouco depois, estou a ligar para o Mosteiro de Singesverga, procuro um tal Daniel Faria. Que se encontrava no Mosteiro da S. Bento da Vitória, no Porto, dizem-me. No dia seguinte, entrevisto o poeta que ia ser monge. Voltei a ler poesia por causa da poesia do meu amigo Daniel. Os livros, “Homens que são como lugares mal situados”’? Manuel Duarte, o meu bisavô, veio do Sul. Conhecia a memória das árvores, talvez soubesse mesmo seu idioma rumorejante. Não é do meu tempo, nem sequer uma fotografia existe desse homem do Sul. Do meu bisavô herdei a paixão das árvores: quando arriba o tempo justo, afio a navalha de enxertia, mudo o destino de algumas. Faço enxertos de alporquia, de borbulha, de encosto; sei achar o cavalo forte para o garfo navegar, crescer, fazer-se nova árvore a partir de raiz estranha. Esse legado vegetal, que imagino ter vindo do meu bisavô, emprestei a personagem de A Fenda no Cavalo: acalentava o sonho de florir aldeias abandonadas. Para cumprir esse poético desígnio, ele queria enxertar glicínias brancas em cavalo de silva brava. Impossível, eu sei, nem o oitocentista Manuel Duarte executaria com sucesso tal alquimia.
FOGO OU MÁGOA. De novo na geografia da infância. Os cães, os cães de caça do meu pai, todos, em coro, uivo plangente a ecoar no silêncio da manhã. Uma vez por ano, ao longo de uma década, eu ouvia a anormal manifestação da matilha. Foram os dias mais tristes da minha vida: o pai partia para o longe. Nesse tempo – que guardo, afinal, eu do tempo? –, dois meus irmãos partiam para mais longe ainda. A guerra. Vi-os, heróis transidos, abraçados a infinita melancolia da mãe. “Vamos em quatro anos de lutas e ganhou-se alguma coisa com o dinheiro do povo, o sangue dos soldados, as lágrimas das mães? Pois atrevo-me a responder que sim?” A hediondez de Salazar, a crueldade da ditadura. Roubo estas palavras ao amigo Augusto Baptista: “sou pai e filho”. Às vezes escrevo, pela noite dentro, histórias para crianças. As palavras, o seu enredo interior empolga-me: é fogo e silêncio. Ou mágoa. Por elas, pelas palavras, vivo por outros homens e por outras mulheres. Tenho quase cinquenta anos. Se o afectuoso leitor até aqui me acompanhou, despeço-me pela voz do Daniel Faria: “Guarda a manhã, tudo o mais de pode tresmalhar”.


Texto publicado no JL

sexta-feira, 18 de junho de 2010

a noite imensa

“Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta,
aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de
que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o
silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste,
com a serenidade dos teus noventa anos: «O mundo
é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.» Assim
mesmo. Eu estava lá”.

José Saramago
As Pequenas Memórias

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O jogo da vida

o meu pai faz hoje noventa anos
sonha ainda, sem o dizer a ninguém,
com madrugadas de caça: os cães
nos rastos frescos, o jogo da vida e da morte.
sonha com trutas velhas, como a que uma vez
pescou à amostra no açude das maias.

o tempo é um animal inquieto que nos aquieta.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

regresso

a manhã avança
sobe pelas árvores
como um gato novo
à descoberta do mundo.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Sob a tristeza

o maio pelos caminho de barbeita
o lugar no topo do monte, gente que
resistiu a fomes e aos frios, generosa
na partilha, ávida das palavras dos que chegavam
do vale onde os do lugar do monte
iam comprar fósforos e querosene.
as palavras no tempo da penúria
sustento são:tépidos frutos maduros
sob a tristeza.os homens de barbeita,
gente generosa repito, quase
nada tinha para dar a não o ser uma honra
tão cristalina que só, talvez, certos humildes
preservam. Era o maio, as giestas
floridas na fímbria dos caminhos. mas era o maio,o
paveseano vício absurdo de improvavelmente ser feliz
em remotos lugares. volvia a casa com um lírio.
um lírio para a mãe.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Furões e os barbos

os que andam pelo maio e deixam a pegada
nos campos lavrados. o delírio dos peixes
do rio, insisto. o meu irmão enche o cacifo
de trutas pela tardinha, (acirra a minha
clausura pelo telemóvel) pesca com pena de gaio
vermelha e o luxor antigo, de quem era o
carreto: do pai? do pai que num dia
extraordinário de maio, à amostra
pescava babos, barbos enormes, para espanto
geral. Foi num dia de trovão, cantavam
os melros e os sapos iniciavam a maternal
caminha para a água, e o pai com o velho
luxor pescava barbos: com um isco que
apenas ilude truta ou achigã. Quem
é do mister, se não assistiu ao
maravilhoso fenómeno, não acreditará.
Eu vi, barbos grandes, enlouquecidos
pela paixão do maio, atacar a amostra,
iludidos pelo brilho do metal, a defender
um território que não é o seu. Alguns
rebentavam o fio, o pai atava outra amostra
e reiniciava o estranho jogo na boca
da barragem do ermal. os outros
pescadores à linha, com as suas canas
da índia, espantados com tamanha
abundância e desvario dos sisudos
barbos! maio. as pegadas que deixamos em
maio. o cacifo de truta não é o mesmo
que o cacifo dos caçadores que levavam
os furões para o monte: esse,
estreito, tinha a forma do animal o voraz.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Grilos e bogas

uma rima para esta melancolia
de ser maio e não poder calcorrear
o dia. o regresso a casa despojado dos peixes do rio
trutas, bogas cor de ouro, um barbo talvez
iludido na corrente. o maio pintalgado de melros
e corvos, esses eternos corvos que abjuraram as rotas antigas.
uma rima para tudo isto, tu sabe, não é fácil
porque os grilos cantam no silêncio dos teus olhos
alegria das dedaleiras na borda da caminho trava-me o passo.
no silêncio dos teus olhos parece verso
batido. parece, e talvez não seja: só ouve os grilos
quem sabe domar o silêncio.

sábado, 15 de maio de 2010

devoção

Ontem fui ver o papa, no Porto. Ofereceram-me preservativos. A Igreja está a mudar.

terça-feira, 4 de maio de 2010

O velho poço

uma rima colorida
para as ervilhas de cheiro
do meu quintal cheio de maio
e do seu fogo imaterial
não será rima infantil
enfim, não faz mal
é maio e não falarei
das cerejas nem das rãs
que morrem de amor
entre ao agriões do velho poço

uma rima
apenas uma rima colorida
para o fogo sensual

sábado, 1 de maio de 2010

Lenha verde

a mãe desaprendeu a fala.
a mãe cativa. só o verde
dos olhos me aperta
e murmura como se eu fosse ainda o rapazinho
desavindo com o sono.
digo, mãe
mãe, vou cortar lenha verde
zangarinho e alecrim na mata das dornadinhas
faremos uma fogueira pelo s.joão.

Giestas

trazem ramos de giestas.descem os
montes assim floridos: o primeiro dia
as giestas alumiam a casa
rito de espantar fome e penúria, diriam os velhos.
os que vêm de maio comem as derradeiras
laranjas cativos na cega paixão
das cerejas. às vezes sentam-se e contam
palavras que apartam
devagar dos bolsos. às vezes adormecem
e emigram no rumor da tarde.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Laranja

dá-me uma rimã
para a lua
como laranja
doce, verso antigo
uma rima que ate
e me desate da noite

sábado, 24 de abril de 2010

O lento caminhar

e agora uma rima para abril
que não seja cravo arma
foice: lírio talvez
teus olhos, a secreta
alegria de resistir
contra os nossos medos
e que rime com futuro
e perdoe aos amigos que traíram.
e agora uma rima para abril
teus olhos
uma gabela de lírios o lento
caminhar do gado
o tépido caminhar
para a morte

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Cavalo

Agora uma rima
para tangerina
pode ser a crina
do cavalo de vento
da menina: o que voa
nos sonhos
e dorme nos cachos
da glicínia
uma rima breve rima
enquanto tenho tempo
de ver a minha menina.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

tangerinas

Estou debaixo de uma tangerineira
cheia de pássaros maduros
nada procuro. só a fugidia
sensação de anotar o amadurecimento das aves,
a silenciosa ternura da tangerineira que conhece a malvadez dos ventos.
nada procuro. é frágil a pele da tangerineira: os gatos afiam
aí as unhas. e ela, cheia de alegres pássaros maduros, nada diz.
é esse silêncio vegetal que interroga, que te perturba. e tu nada sabes
nada sabes do enredo íntimo da tangerineira: da espantosa
alquimia de fazer do húmus pássaros maduros - regressam pela tarde
exaustos de doçura.
que nome dar aos humildes pássaros que a tangerineira transmutou a identidade.
tu nunca viste uma rã colorida.

sábado, 17 de abril de 2010

Virá a Morte e terá os teus olhos

Tu não sabes as colinas
onde se derramou o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós largámos
a arma e o nome. Uma mulher
olhava para nós quando fugíamos.
De nós só um
parou de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
Agora é um trapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera-nos nas colinas.

Cesare Pavese

*
A memória da luta parece infinita. Tecida na mais íntima matéria perecível, tão frágil, afinal, é de verdade. Sempre que releio Pavese, paro nas colinas: vício absurdo, eu sei.

sábado, 10 de abril de 2010

Abril

O alarido das rãs apaixonadas
incendiando a tarde

sexta-feira, 26 de março de 2010

Tempo


Hoje encontro a rima

para o tempo

veloz rio de silêncios

de tudo faz seu leito

espraia-se por dentro das árvores

atravessa o teu peito

que idade tem o tempo

o meu tempo, essa seiva de futuro?

terça-feira, 23 de março de 2010

Um lírio de água

Quem me dá
uma rima
para coroar
a primavera
pode ser uma alga
singela ternura
um lírio de água
no tempo da alegria
nervura de mágoa

quem me dá
uma rima
para coroar
a primavera
pode ser uma ave
restos de alecrim
no alto da serra
grito de verdura
a fome mais dura
é ficar a tua espera

segunda-feira, 15 de março de 2010

Devocionário

Abril
mês de um só dia.

Capitão
de tempos a tempos
os sonhadores chamam-se assim.

Chaimite
máquina de guerra
carro de sonhos,
às vezes.

Cravo
desconhece-se outro
instrumento tão aromático.

Grândola
polifónica rebeldia
no tempo do vinil.

Liberdade
nome de avenida.

Utopia
breve brisa de água doce.

Povo
quem mais ordena diziam
os que falavam Utopia.

Maio
as giestas escrevem florida ternura
no teu rosto

terça-feira, 2 de março de 2010

Cão grande e fusco

O gado desapareceu do monte. De noite, doninha de enigmas obscuros, vieram procurá-lo. Traziam varas de marmeleiro, lanternas, um cão grande e fusco. Ninguém avistara o gado. Malvadeza, as vacas tinham chocalho! Um dos homens segurava nas mãos um ouriço-cacheiro. Vale alguma coisa? Não, não presta. Ele pousou-o no chão, quando se previa outro desfecho: esborrachar o bicho contra o muro. Fomos ao posto da guarda, ninguém nos atendeu. Estou a dormir, toquem na campainha. Assim foi: premiram o botão que acorda a autoridade. Que se passa? Não tendes relógio! Os homens contaram a história do gado desaparecido. Sim, malvadeza, senhor guarda. Um momento, disse o agente. Recolheu a cabeça, fechou a janela; desceu as escadas e, de chofre, manda identificar o dono do cão grande e fusco. Multou- o. O bicho andava sem açaime. Os homens trocaram olhares, acenderam cigarros.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Rimas infantis

pergunto ao gato
tens uma rima
que rime com alçapão
ele diz-me
agora não posso
vem aí o cão

pergunto ao rato
tens uma rima
que rime com sapato
ele diz-me a erguer o nariz
logo, mais logo
estou a sentir cheiro do gato

pergunto ao meu cão
tem uma rima
que rime com gato
ele diz-me
deixa-me dormir
deixa de ser chato

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Palavras para uma fotografia

O homem irado enxota a memória. É como uma árvore a preto e branco. Entenda-se: uma árvore a preto e branco não tem claridade, assusta. Como a fúria encenada deste homem. Parece fardado, parece um militar. A ira, no entanto, rouba-lhe a autoridade. E nada, nada existe mais perigoso do que um fardado destituído de poder: é capaz de tudo: de disparar pelas costas, de te perseguir em contramão na auto-estrada. Os homens irados, volto a dizer, flagelam a memória. Vê como este homem e sua farda verde emergem da noite. Não, não é a chave (inglesa?), quase tridente de gladiador, nem a mão garra de rapina, que te cativa, que te assombra. A fúria do homem habita-lhe os olhos: esferas de fogo prestes a explodir. Mas, repara bem, a boca, em forma de estertor de peixe, esbate a perspectiva de violência. O homem fardado, afinal, tem medo. Observa de novo: a garra de rapina, a chave (inglesa?) na mão, agora como se fosse lasca de sílex, o mesmo olhar gaseado (esquece a farda). Um homem predador surde, entre a coragem e o medo, contra a manada de auroques: se tresmalha um, precipita-se no desfiladeiro rochoso. Quem porfia na encenação da fúria mata caça. Ele regressa à tribo: traz as mãos ensanguentadas e um pedaço do boi esquartejado a golpes de pedra afiada. O troféu sacia a fome da comunidade nómada, e o caçador ascende na hierarquia social – sabe tirar proveito do medo dos outros animais, será o chefe. Aqui, o homem irado, não esbanja a memória: começa a sedimentá-la no vagar de aluvião. Não é isso que vês no homem: a brancura da sigla na roupa anula a ideia de farda. Ele é um paisano, um não militar, falso troglodita. Encena a fúria, como sabes. A ira toda, a insânia a estralejar nos olhos, boca de peixe a engolir a morte. Observa a mão que segura a chave: antes foi arma de reciário apontada a transido gladiador caído na arena, depois lasca de sílex. Afinal, é pormenor inofensivo. Ninguém, que pretenda atacar o outro, empunha a chave desta maneira, ao arrepio das leis da física, como quem segura a faca pelo gume. Lentamente, como uma árvore, ele retoma a memória: a luz é mais forte do que a noite.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Rã florida

Amar,
verbo cheio de água salgada.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O voo das árvores

as árvores andam
devagar. são como homens
embora não voem. na primavera
as árvores emigram
plenas de juventude
os homens envelhecem
mesmo enamorados

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Devocionário

Cereja,
rubra palavra, sinónimo mais doce de Maio.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Rã florida

*

Melancolia
Palavra curiosa, a melancolia: suave ouvir, difícil de esconder.

*
Inverno,
é a palavra mais branca que conheço
*

Verão

gosto do cheiro a sargaço da palavra, outras vezes é a sua sombra que procuro.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Salmo

A vida
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho
breve.

Carlos de Oliveira

Trabalho Poético, ed. Sá da Costa

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O tempo da hediondez

Cartas da prisão
ao filho que ia morrer


Do Forte de Peniche, nos anos sessenta, o preso político António Dias Lourenço escrevia e ilustrava histórias infantis para o Tóino - o filho que morreu pouco depois, sem ver o pai em liberdade. Quatro décadas mais tarde, os postais de prisão foram reunidos em livros, para as crianças de hoje conhecerem um tempo brutal.

Publicou As Cartas da Prisão para o Meu Filho Tóino (Ed. Avante!) para lembrar às crianças de hoje os «anos de que não ficou uma linha, um objecto, uma foto»?

O livro tem isso na raiz. A minha família foi toda presa: o Tóino, uma irmãzinha mais nova, eu e a mãe. O meu menino oito anos depois morreu. E eu ainda estava e continuei na prisão, no Forte de Peniche.

O seu filho ficou a viver com os padrinhos. Lembra-se da última visita?

A última visita mostra bem a hediondez como eram tratados os presos político. Deram cinco minutos para me despedir do meu filho, e puseram de vigilância nesse dia – Tóino não sabia que ia morrer, mas eu e os guardas sabíamos – o guarda mais estúpido, mais bestial que havia em Peniche. Começo a visita com o meu menino, e a certa altura essa besta bate no pulso e diz, aos gritos, «cincos minutos! Está na hora, acabou-se a visita». O primeiro gesto que me empolgou foi atirar-me a ele ao pontapé e ao murro, mas lembrei-me de que era a última vez que via o meu filho. Não quis que a última imagem que levaria de mim era a de um homem que andava à pancada com outros homens.

O seu filho morreu de leucemia pouco tempo depois.

Por abertura dos camaradas franceses, o meu filho foi ainda a Paris para ser tratado, mas sem sucesso. Daí partiu para União Soviética, onde morreu. Era uma criança extraordinariamente inteligente. Em França era ele o interprete com os padrinhos; na União Soviética, também: aprendeu o francês e o russo nessas condições.

Os desenhos e as a histórias infantis foram a forma que António Dias Lourenço encontrou para conviver com o filho ausente?

Como sabe, eu estava em prisão celular, 24 horas por dias fechado. Durante 14 anos. Não havia condições para acompanhar o desenvolvimento dos meus filhos mais novos. A única forma que tinha de o ajudar era, exactamente, enviar-lhe esses postais.

Postais ilustrados, com histórias dentro. Funcionaram também como uma espécie de manual de educação?

Muitas professoras, que têm visto o livro, gostam dele por causa disso.

Hesitou quando o convidaram a publicar estas memórias tão íntimas?

Nunca pensei que os postais dessem depois um livro. A certa altura, uns amigos da editorial vêem os originais e disseram: «O pá, isto dá um bom livro». E assim saiu este livro bonito que está a ver. Deve ser visto, apenas, como «estorinhas» das de dizer boa-noite aos nossos filhos.

A PIDE censurou alguns dos postais?

Nós tínhamos encontrado a forma de fazer passar alguma coisa possível para a formação dos nossos filhos, evitando que a censura cortasse. Tinha muito cuidado no que escrevia de maneira a que passasse, em que pudesse dizer aquilo que achava útil e necessário para os desenvolvimento dos meus dois últimos filhos – os outros dois, uma andava na clandestinidade, também passou sete anos na cadeia, a outra, do meio, estava em Angola, a viver com os meus cunhados.

Havia alguma mensagem cifrada nas histórias?

Para os meus filhos não podia... Para isso tínhamos outras formas de ligação.

Como fazia os desenhos e os contos?

Estava sozinho fechado na cela, Trabalhava num tampo ligado à parede, que fechava e abria: fazia aí os desenhos, escrevia e lia. Eles não deixavam entrar aquilo que nós queríamos ler.

Qual era a regularidade de envio dos postais?

Não mais que um por semana. O meu menino era muito inteligente. Viveu oito anos com os padrinhos que o acompanharam até ao momento da morte: eles para ele eram os verdadeiros pais. Durante uma visita, tinha ele nove anos, diz-me assim do lado de lá das grades: «Ó paizinho, eu gosto muito de ti, mas gostam também muito dos padrinhos». Ele devia estar diante deste problema, «eu devia gostar mais do meu pai do que dos meus padrinhos, mas gosto também muito dos meus padrinhos». Não deixei passar isso, e disse-lhe: «É justo que tu tenhas amor aos padrinhos, eles tem sido para ti verdadeiros pais – estás a ver, o pai e mãe estão presos, é justo que tenhas por eles um amor assim tão aberto, é bonito que tu faças isso». Você não calculam o ar dele a seguir, ficou tranquilo - ele tinha esse problema moral lá dentro.

O Tóino também lhe mandava desenhos para a prisão?

Mandava. Quando morreu já escrevia, andava na escola... Mandava-me coisas escritas, que eu perdi.

Como recuperou estes documentos?

A madrinha do meu filho guardou todos os postais. Depois do 25 de Abril, antes de morrer, devolveu-me tudo. Para mim foi um precioso capital que me deu da vida e do meu filho.

Quando o visitava na prisão, Tóino falava-lhe das histórias?

Tem de compreender que eu estava preso, com um guarda atrás de mim e a falar com uma criança de menos de dez anos...

Nem das personagens das histórias?

Às vezes vinha uma coisa ou outra. Eu tinha de encontrar a maneira de conversar com o meu filho e ao mesmo tempo conversar sem que o guarda viesse, como vinha muitas vezes, dizer: «não pode falar assim, tem que falar mais alto»... Como eu não era parvo nenhum, procurava que isso não acontecesse. Não queria criar conflitos com os guardas diante dos meus filhos.

Também mandava postais ilustrados para a Lelita, a sua filha?

Também, também mandei. Mas a minha camarada com quem ela vivia em Coimbra morreu, e desapareceram os postais. Os postais para a Lelita eram no mesmo sentido, com conteúdo idêntico aos que integram este livro.

Muitos camaradas seus ficaram espantados com a qualidade dos desenhos...

Compreendo, eu não tenho nenhuma mania... mas também tenho o sentido de avaliação e sei que esses desenhos aí são bonitos. Fui aluno do Abel Manta e de Maria Clementina Carneiro de Moura, eram muito meus amigos. Foram os meus mestres de pintura e desenho. O livro está bem pintado, acho eu, era uma noção que eu tinha já feita das minhas habilidades artísticas. Quando fiz esses desenhos não estava a pensar na publicação de um livro;o não é copiado de nada, isso é minha pura inspiração, eu não tinha nada para copiar.

Depois de sair da prisão, continuou a actividade artística?

Não. Depois tinha mais que fazer. Saí da prisão com o 25 de Abril, entrei no Avante!, onde fui director durante 17 anos... os desenhos que fazia era o editorial e discutir com os camaradas o conteúdo do jornal. Quando assumi a plenitude da minha vida, todo o meu tempo era dedicado ao trabalho do partido. Era capaz de dar um bom pintor... Escrevia também poemas, ainda guardo um grande número de poesias minhas que tem um certo valor.

Pensa publicar essa poesia?

Sou capaz de pensar nisso, talvez publique. Eu penso fazer uma coisa do tempo passado, porque há gente que está a querer falsificar a História. Quero fazer o possível para que certos factos não sejam falsificados. Principalmente os que vivi e tenho a certeza de que não se passaram assim, nalguns até tive um papel responsável. Quero ver se antes de morrer consigo escrever isso - já estou quase nos 9 a zero - faltam três meses para fazer os 90 anos.

(entrevista feita em 2005)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Memória do frio, 1962

O Vinho
Gelou
Nas Pipas




“Enquanto ao sul do sistema orográfico Montejunto-Estrela o frio abrandou sensivelmente, nas regiões ao morte continuam a registar-se temperaturas negativas, as mais baixas dos últimos anos, com prejudicial incidência nas culturas, especialmente nos laranjais, e outras consequências entre as quais sobressaem a falta de água, por terem gelado as fontes de abastecimento, e a interdição do trânsito em muitas estradas, causada pelos nevões. O nosso solícito correspondente em Calde (Viseu) dá-nos a notícia deste facto singular: em Casais do Monte (freguesia de Moledo), gelou o vinho, em várias casas, e solidificou-se. E foi preciso fazer fogueiras para que ele saísse das pipas.
Não há memória naquela localidade, que é a de maior altitude na região, disto alguma vez ter acontecido. E em redor das lareiras, comenta-se o caso inédito, saboreando o vinho bem aquecido, refeito os apreciadores do susto que tiveram, quando deram com ele congelado...

Mortos pelo frio

Alcaçovas – devido ao frio, morreu na Barragem das Banhas o trabalhador António Bernardinho Santos, de 26 anos.
Crato – Em consequência do frio intenso, morreu o trabalhador rural Abílio as Conceição, de Flor da Rosa, deste concelho.”
Diário de Notícias, 30 de Dezembro de 1962

sábado, 9 de janeiro de 2010

[Rogadas do Vrao]

Gadañarei coma nas grandes rogadas do Vrao
tralos gadañeiros sucesivos
lambendo con brío os calcaños de diante.
Ir e vir a gadaña canta a ritmo binario
sobre um fondo roxe ou rio contino.

Uxío Novoneyra