sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Pré-história

Cansado de humanidade, ganhou pêlo. Abjurou a marcha bípede, subiu às árvores do bosque: comeu frutos e enxotou pássaros. A família pôs anúncios nos jornais. Dava alvíssaras a quem a informasse do paradeiro do homem. E ninguém até hoje descobriu o professor de Pré-história, com horário incompleto.


O salto

Sou o presidente das minhas ideias. Avisa o homem do saco de cabedal. Oferecem-lhe cerveja fresca como chocolate para cativar criança. Acabaram os passaportes para o paraíso. A partir de agora, quem quiser dar o salto terá de pagar ao passador. Ao passa dor. Sujeita-se, como outrora, à exploração dos contrabandistas da penúria. Os outros murmuram. Um deles, tímido, pergunta: quanto poderá custar a passagem. Sorri o homem do saco de cabedal. Vinho para todos, pago eu! É espantoso como esta gente apalpa a metafísica.


Ofício

Nasceu com um defeito na sinistra. Nos dias de feira, expunha a deficiência e o brilho das moedas tombava na boina preta. O homem, o homem sabia meio ofício divino: cantava missa, sem ser tonsurado. E pertencia-lhe um olhar lancinante e triste, próprio de pregador que acirra os prantos femininos. Um dia, porém, o império estremeceu: outro pedinte arribou à feira. Nada a fazer, teriam de repartir o mercado. O outro desconhecia o ofício divino. Mas ostentava uma perna roxa de chagas e pus, sobrevoada por bando voraz de moscas. Olharam-se com ódio sombrio. Faz queixa à guarda! Atiçou o da perna roxa. Optou pela legalidade. Na Fazenda Pública exigiu ser colectado. Eu pago os impostos, mas tirem-me de lá o leproso. Riram, os das Finanças: Tu estás isento de impostos, fazes parte do clero. Há dias, alguém o viu refastelado numa cadeira de baloiço, vestindo um bom fato - afagava com a mão esquerda um alentado gato persa.

In O Homem do Saco de Cabebal, ed. Campo das Letras

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

gatos

gatos cheios de luz
a saltitar na manhã
parecem borboletas
o outono traz esta generosidade
de luz e outros frutos
também eles maduros de claridade.

sábado, 24 de outubro de 2009



Pirilampo



Uma faúlha de Sol
a esvoaçar na noite

não conheço paixão
mais luminosa

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Outono

matéria da aluvião,
digo. a luz silenciosa
da manhã, nenhuma palavra.
a aluvião dos dias
marcas no corpo:da mesma água do outono
bebemos.

sábado, 10 de outubro de 2009

O bosque

A visita a uma casa alfarrabista do Porto abriu, subitamente, o portão do bosque. Um remoto bosque harmonioso de árvores distintas e outras, agora, vulgaríssimas, que viajaram de longe para adornar a paisagem portuguesa. Procurava algo sobre José Marques Loureiro, homem que não precisava de abraçar as árvores para lhe saber a idade, e saí da Livraria Académica, de Nuno Canavez, sem pagar um tostão, com quatro volumes de Jornal do Horticultura Prática, “premiado na Exposição Hortícola de Lisboa de 1870, na de Gand de 1872, e na de Lyon de 1875”. Marques Loureiro criou e dirigiu o Horto da Virtudes, na cidade do Porto, que havia de povoar de plantas e árvores, marcadas pelo exotismo e raridade, os jardins do Norte de Portugal e alguns da vizinhas da Galiza. E fundaria também o jornal, que tinha Duarte de Oliveira como redactor, para divulgar os produtos da respeitada casa e aconselhar a amadores e profissionais as melhores técnicas de cultivo. Lentamente, o jardineiro e horticultor trazia claridade, novos sabores à sombria agricultura portuguesa e, não menos importante, outras tonalidades e beleza aos jardins, bosques e parques públicos.
Marques Loureiro testava as espécies nos viveiros e só depois as lançava no mercado. Tornou o Porto a pátria adoptiva da camélia ( “a rainha do Inverno”, como ele lhe chamava), difundiu em Portugal muitas outras espécies como, só para dar um exemplo, a erva-das-sete-sangrias: para quem não saiba, é o comum diospireiro, que ilumina as manhãs de Outono com seus frutos de fogo. Mestre na arte de enxertia, o cosmopolita jardineiro das Virtudes, sempre atento às novidades dos principais hortos europeus, através do seu jornal, verdadeiro manual de bem granjear a terra, ensinou um pouco de tudo. Até a aparentemente simples tarefa de capar o melão. Fruto de primeira ordem, dizia Loureiro aos seus leitores, trazido para o Ocidente “depois das primeiras expedições dos romanos contra a Pérsia, onde se encontra abundantemente no estado selvagem”. O melão carece de cultura cuidada, de regras no momento certo, e da geométrica e indispensável capação por via de tolher o avanço sôfrego das guias . Caprichoso, o melão. “Não admite meio termo, pode ser um verdadeiro manjar dos deuses ou um fruto detestável, que nem ao próprio diabo se poderá oferecer”. O Horto das Virtudes e o seu proprietário, um dos desses homens modernos num tempo arcaico que o Porto teve noutros tempos, ajudaram a mudar a agricultura portuguesa, diversificaram a nossa floresta, encheram os jardins, privados e públicos, de árvores de nome estranho, como araucaria, Ácer ou o bíblico sicômoro. Pergunta o leitor: a que propósito aparece aqui, desgarrada, esta prosa? Quem conhece os ciclos da natureza, sabe que começa agora a época da enxertia (garfo, mergulhia, borbulha, etc.) e do plantio de novas árvores, que aproveitam o repouso da terra para estender raiz. E plantar um árvore é bem mais empolgante do que escrever um livro.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Burburinho

burburinho de asas rente à figueira
dos grandes figos pretos. de novo a fome apátrida das aves
por outubro dentro. Falo à mãe de estrigas de linho
como se duas palavras antigas lhe devolvessem a juventude.
e de esquecidos homem a cavalo, passavam pela alva rumo à feira de s. Miguel nas terras de basto. o cheiro a mosto e sua secreta alegriaque havíamos de descobrir mais tarde. a felicidade dos cães no rasto dos montes. Que palavras para restituir a marcha ao caçador emaranhado na trôpega quietude.
o burburinho de asas sobre a figueira


que aves são essas, meu filho.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A lua, um lírio

dá-me uma rima
porque acabou o verão
dá-me uma rima
o sorriso, uma rã e um limão

dá-me uma rima
já acabou o verão
dou-te meu coração furtivo
a lua,um lírio, uma canção

dá-me uma rima
já me sinto ledo e cativo
e não queria e não queria