quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O rebanho

Somos árvores, sem nome como os animais bravios. Acossadas, árvores acossadas: como animais bravios. O fogo persegue-nos desde o início dos tempos. Cerca-nos. Como se fôssemos animais bravios. O fogo, cego caçador cego, levanta paliçadas de chamas à nossa volta – isola o caminho, todos os caminhos. E nós somos (o fogo não sabe) o rebanho mudo que ascende a serra com os pés presos no chão. Só é possível o movimento (ele não sabe) quando uma das nossas sementes, arremessada pelo vento, acha abrigo na penúria da terra. Cego, o fogo é cego: rouba-nos (rouba e fica com nada) a imperceptível claridade e alumia a noite. Crema a cegueira da dúvida. Na natureza, o fogo não sabe, o luto revivifica. Da devastação surgirá uma flor. E o rebanho, da imobilidade perpétua, irá beber aí a brancura e começar de novo a caminhada no dorso da serra.

domingo, 26 de outubro de 2008

A árvore, fruto e fogo

Que árvore seria Agustina se fosse uma árvore? Penso nisso agora, enquanto escrevo. Nunca antes havia tentado este exercício de aparente despersonificação, este jogo de podador encantado que vê a verdura da folhagem, às vezes flor e a doçura dos frutos, no rosto das pessoas. Porquê Agustina? Que irá, estou certo, sorrir do seu imprevisto exílio no reino vegetal. “Árvore de folha persistente, pelo menos, para impedir as constipações!” – dirá, a fustigar com os finos ramos da ironia o meu desastrado lirismo. Mesmo assim, não pretendo fugir do essencial, do que me fez escrever, em jeito de homenagem, a Agustina Bessa-Luís, sem a tratar por senhora dona, como sempre faço quando nos encontramos. E o essencial é: que árvore seria ela se fosse árvore? A sereníssima carvalha, o robusto freixo, a dócil magnólia branca, a caneleira no seu obscuro mundo de aromas ou uma das espécies importadas pelo Horto do Virtudes, do mestre Marques Loureiro, que alagaram de extravagância jardins do norte de Portugal e alguns da Galiza? As sagradas escrituras talvez me ajudassem a achar a árvore certa, a árvore justa: as sagradas escrituras, à sua maneira, explicam o insondável do mundo. Aos pecadores, o apóstolo S. Judas chamava “árvores do Outono sem raízes”. Agostinho e Ambrósio, entre muitos outros santos, de igual modo gastaram parte do seu piedoso tempo a transmutar para os simples mortais a virtude algures escondida no bosque harmonioso. Afinal, as árvores são como os homens, embora não andem.
Voltemos ao essencial: se tivesse vivido no tempo do Horto das Virtudes, Agustina provavelmente daria nome a variedade de camélia. Não, jamais seria camélia. Desde o primeiro momento, desde a primeira linha, vejo-a árvore de fruto.
Diospireiro.
Diospireiro, eis a árvore.
Divido o fruto, a palavra dióspiro, em duas partes: com deus e o fogo fico, deus e o fogo como a espantosa obra de Agustina.
Pelo Outono, eu sei, do diospireiro esvoaça a folha: a nudez vegetal, contudo, não trará mal ao mundo, nem constipações poéticas à escritora-árvore (só por esta noite). As folhas emigram, digo. Ficam os frutos de fogo a arder pelo Inverno dentro: eles guardam, como a luminosa palavra de Agustina, o segredo mais antigo da terra.

Árvore, 20 de Outubro de 2008

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

O segredo das andorinhas

O Carlos leu, muitas saudades, um beijo grande para todos. A mãe começou a chorar. A mãe, agora, anda quase sempre a chorar. Não à nossa frente. Mas eu sinto quando a tristeza a enleia. Chora em silêncio: as lágrimas desprendem-se, rolam pelo rosto, como se dentro dos olhos existisse um cacho de pequeninas esferas de vidro; algumas cruzam os lábios e desaparecem. Nunca tinha visto chorar em silêncio, nem nos folhetins da rádio. Coisas de homem, diz o Carlos. O Carlos engana-me: eu vejo as lágrimas, a mãe em silêncio. É a primeira vez que lhe escrevo. É a primeira vez que escrevo a alguém: porque, eu pensava, os amigos não podiam viver longe. E muito menos me passou pela cabeça que me abandonasse. Foi trabalhar para outro país, não nos abandonou! Gostava de acreditar no Carlos, mas como é possível o Carlos falar verdade se o pai não está aqui! A mãe, a mãe, sim. A mãe ficou. Todos os dias, todas a noites, a todas as horas a posso ver. E dá-me um beijo antes do sono. Não conta histórias, e eu não me zango: a mãe trabalha muito, chega cansada à noite. E diz-me: dentro da nossa cabeça há uma gaveta pequenina, mais pequena do que uma caixa de fósforos, onde os meninos guardam o sono. Depois do beijo, lembra, baixinho, a boca quase dentro do ouvido: abre a gavetinha... Abro essa e a outra, a dos sonhos. E nos sonhos, longe e perto ficam à mesma distância: ao alcance dos olhos. Talvez o pai saiba explicar... sai todas as noites da gaveta.
O meu professor ensinou-nos a escrever parágrafos curtos; dessa forma, domina-se melhor a Língua. Como vê, o meu primeiro parágrafo é do tamanho de um comboio (foi um comboio... nunca vi nenhum, e odeio-os tanto). Não vai mostrar a carta ao professor, pois não?! Estou zangado, mas, diz o Carlos, o pai voltará em breve: e vai trazer-me (trazer-nos, diz o Carlos) uma bicicleta de corrida! Não posso acreditar: bicicleta de corrida não cabe dentro da mala. Cabe no comboio. Um tolo, o meu irmão: quem anda de comboio é porque não tem bicicleta, e quem a tem não viaja de comboio. O meu vocabulário é pobre, disse o professor. Disse, à frente de toda a gente. Contei à mãe. E a mãe ficou muito zangada (zangada, a mãe, parece deitar lume pelos olhos, como se nos olhos também arrumasse gasómetros acesos). É pobre, é... mas nesta casa ninguém passa fome! Para ser sincero, a mãe não terá percebido o sentido de vocabulário. Aconteceu-me o mesmo quando o ouvi – afinal, é um saco grande onde dormem as palavras. Se algumas dormissem para sempre, o mundo seria outro. E o professor, o professor conhecerá as palavras todas? Da segunda vez, disse: pobre... até no Português! Senhor professor, tenho duas gavetas na cabeça, mas estão ocupadas. Levou a mal, fustigou-me as mãos com a vara de oliveira. Quando nos castiga parece guardar também gasómetros acesos nos olhos. Eu menti-lhe. Há outra gaveta, onde prendo as pessoas más: tenho medo de a abrir, e nunca consegui fechá-la à chave.
O pai também chora em silêncio?
Não, não responda. Se tiver tempo, escreva-me. Fale-me do país distante. Daí vêm os tordos, no Inverno. O Carlos engana-me. Como podiam os tordos voar tão longa viagem. E as andorinhas imigram de terras muito, muito mais longínquas. Neste caso, dou-lhe razão. Mas ele não sabe o segredo. As andorinhas atravessam o mar, os mares, na proa dos navios. Quando os barcos chegam ao Tejo, elas levantam. E voam no céu português. Quem ensinou a caminho às andorinhas fomos nós: os portugueses descobriram novos mundos. As caravelas trouxeram escravos, ouro, laranjeiras, pimenta. E andorinhas que, por descuido, adormeceram nos mastros. É tarde, vou apagar a luz. Segredo, pai. A história das andorinhas é um segredo nosso. Quero ver a cara do professor ao ler proa, especiarias, mastros, imigram. Vocábulos, palavras, que ele não sabe que eu sei.
O teu pai imigrou ou emigrou?
Vou chorar. E eu não sei chorar em silêncio.


Touça, 17 de Setembro de 1971.


Fecho o caderno.
Apago luz.

A bicicleta e um rosto, exausto e feliz, iluminam a noite. O homem pedala do longe. Pai, mandou alguém trazer-me a bicicleta?! Nesse país deve ser assim que entregam as bicicletas aos meninos. Depois, o homem, fará a viagem de regresso – no comboio, como o pai. O meu pai pedala, exausto e feliz, na bicicleta. Abro os braços, não sei as palavras para o receber. Os abraços do regresso são diferentes dos abraços da despedida. Já sinto a barba por fazer na... Meu Deus!, a gaveta: uma mão foge da gaveta das pessoas más, sem espantar o barulho. E agora o pai pelada, pedala. Pedala como um ciclista em fuga veloz: o vento engole-lhe o boné, revolve-lhe o cabelo, as abas do casaco esvoaçam como andorinha a subir. Andorinha a subir no azul.
O pai já não pedala. Voa no céu, foge-lhe das mãos a bicicleta... A gaveta fecha-se. O pai lá dentro.
A mão. A mão má cresce como cobra estendida, enrosca-se na minha bicicleta tombada no céu, a roda da frente a girar.
Arrasta-a. Carlos!
Carlos, Carlos, ajuda-me! Ajuda-me, o professor quer roubar a bicicleta, a nossa bicicleta...
Carlos!


Não fiques triste. Eu só vou desvendar o segredo das andorinhas. Cuida bem da tua bicicleta. Disse-me, no dia da partida. E as lágrimas desceram, em silêncio, pelo rosto – algumas esborrataram o verde da farda.
O meu irmão estava a enganar-me.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Segunda aparição

Ele desceu da tília, como quem vem do nada. Dirigiu-se a mim, chamou-me moço. De súbito, espessa sebe de rapazes e raparigas à nossa volta: como se o homem tivesse cara de actor da Gabriela ou de jogador do Benfica. Actor, enfim. Futebolista, por certo, não seria. O homem era um janota, bigode luzidio,
Moço, eu serei o teu protector.
Pôs a mão na minha cabeça, gesto de rei taumaturgo. O espanto comia-me as palavras, nada pude dizer. Um sonho, parecia um sonho: sob as tílias do Sá de Miranda, sitiado de curiosidade a apertar, cingir o círculo. A notícia serpenteou. Nutriu-se o cerco de docentes, contínuos, pessoal da cantina. O bibliotecário irrompeu na sebe, afoito,
É ele, disse. E o ponto de exclamação subiu até ao último ramo da tília. Ele, o homem, fez um gesto. Ondulou o círculo, como um cardume; o bibliotecário cada vez mais próximo de nós,
É ele, não há dúvida!
Quando todos os olhos debicavam o bibliotecário estendido na terra, sem sentidos, o homem sumiu. Entrelaçada e devota, a multidão quis tocar-me,
Salvem, ajudem o homem!
Pela primeira vez na vida, esvoaçava nas minhas palavras a força de uma ordem. Surgiu uma fenda. Deram-lhe água fresca, sentaram-no encostado à tília.
Era ele, não há dúvida!
A minha vida mudou. O bibliotecário, recomposto do abatimento, aconselhou-me a ficar uns tempos em casa. O segredo morre entre nós! Com certeza, respondi. Mas desconhecia qual a minha quota parte de segredo que teria de velar.
Quando regressei ao liceu, a verdura das tílias planava densa, misteriosa. E todos me olhavam como se eu fosse um anjo terreno. Na cantina, os empregados excediam a dose e levavam-me o tabuleiro à mesa. Não se incomode: ordens do conselho directivo, menino. A minha presença fertilizava o silêncio, o pavor. Já se imaginou a caminhar nos intermináveis corredores do Sá de Miranda por entre centenas de alunos mudos, quietos... ouvir o eco dos passos, o crepitar da roupa?
Um dia, o presidente do conselho directivo veio à sala de aulas, sorriso imenso e dócil. O senhor director do Diário do Minho pede-me para lhe comunicar que seria um privilégio falar consigo. Nós estamos de acordo, é um jornal sério, regido por ética quase divina... Mas última palavra é do menino,
Eu sou moço, senhor professor!
Conversa a dois, numa sala vazia. Antes iniciar a oral inesperada, o bibliotecário chamou-me à parte. Não mates a galinha dos ovos de ouro. O jornalista fez o intróito, longo, tão longo e vernáculo que parecia obra de discípulo do padre António Vieira. Depois a pergunta, de chofre,
Quem é o homem da aparição?
É ele, não há dúvida!, respondi.
A minha vida mudou. Serenidade só a das tílias, declarada na folhagem espessa, mais espessa. Se me dirigia para debaixo das árvores, o liceu ficava suspenso, boquiaberto, como se hibernasse por instantes. Mas do homem, nem sinal. Foi um sonho, não havia dúvida. Um sonho comum: meu e do bibliotecário que detestava Camilo. E não escondia o azedume a ninguém. Chegou, em tempos, a ser repreendido por um velho professor de Português,
Sem Camilo, a nossa literatura seria a nota de rodapé da Europa. E o senhor, o senhor gasta a vida a atirar-lhe pedras, a desviar os alunos do génio que honra a Pátria!
“Os Maias”, por favor. E o meu bibliotecário perdia-se em desvelos; os olhos chispavam de felicidade. Tinta páginas volvidas, porém, o romance regressava ao exílio,
Rapaz: se querias acirrar o espanto, devias ter pedido o Amor de Perdição...
Fui o único a ler o livro na íntegra. Aos meus colegas bastou um resumo da história, que alguém escreveu para livrar os vindouros dos estranhos amores de Carlos, da ironia (que só fazia rir o bibliotecário), da choldra lisboeta. Eu li-o. Todo. Eis o erro, o meu erro. Ele, não há dúvida. Ele próprio descera da tília e viera agradecer-me.
A minha vida virou tormento. A todo o instante me ssaltava a dúvida: quando e onde a segunda aparição? No liceu, na rua do Souto, no adro da igreja de S. Vicente, no Nosso Café? Em qualquer parte, menos ali, à porta das casas de banho do Cinema S. Geraldo. No intervalo do filme. Estendeu-me a mão, sem tirar a luva,
Que fazes aqui, moço!
Moço não vê filme pornográfico.
Na manhã seguinte, revelei ao bibliotecário a segunda aparição. Foi na Livraria Vítor. Ele surgiu, como quem vem do nada, estendeu-me a mão, sem tirar a luva. Um dia, ele virá agradecer-lhe. Pessoalmente. O segredo morre entre nós!

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O homem do arquivo

Herdou do pai (um poeta que bebia aguardente e escrevia versos inocentes) a loucura pardacenta. Pardacenta? Talvez não seja a palavra exacta para armazenar loucura. Qual será o vocábulo justo? Este homem guarda, há anos, o sossego de palavras. Rebanho imenso, no redil silencioso – este sim, pardacento. Além de palavras, cataloga fotografias. Rostos. Rostos de jogadores de futebol, políticos, actores, ciclistas. E outros rostos ainda que a tragédia imortaliza por um dia. A todos protege, igual desvelo, em envelopes, no interior de pesadas gavetas.
Num envelope distinto e secreto, onde às vezes esconde a ternura de uma violenta, habita a Brigitte,
Telefonou-me ontem. Trate-a bem, com pudor: um coluna basta para lhe enaltecer a beleza.
Que desejava a Brigitte?
A dona Brigitte... Como sabe, não revelo conversas íntimas.
Aprendizes. Diz o homem, de novo a dividir a solidão pelo rebanho. Agora como se estivesse a conviver com o sorriso cínico do busto de Eça: Aprendizes, enchem-se de brios fazendo perguntas inúteis.
No jornal toda a gente lhe conhece a mansa loucura, até os tímidos estagiários. Ele é o Homem do Arquivo, porque abjurou o nome, o apelido. Nada deseja de herança do poeta dos versos ingénuos.
Tempos difíceis, porém, se avizinham no matutino, instalado num palacete enorme. O jornal parece visconde arruinado, a vender os anéis para manter a dignidade. A dignidade impossível. O palacete despe-se dos seus bens. Restam alguns computadores acocorados no anacronismo das escrivaninhas de madeira. E aí uma dúzia de jornalistas. Pardacentos. Bem vistas as coisas, diz o Homem do Arquivo, os jornalistas são os eternos pusilânimes. Querem mudar o mundo, e pouco, quase nada, fazem. Desdenham dos escritores. A suas prosas, sim! Seriam verdadeiras peças de arte se não fosse a imbecilidade dos revisores. Pusilânimes. Clamam protecção a Baco, madrugada dentro, mas as suas reportagens, decerto, bebem na ingenuidade poética do meu pai. Fixa os olhos no busto, Eça despacha o mesmo sorriso. Pusilânime... Onde ouvi eu esta palavra? Da boca do Jaime Brasil? Quem era o Jaime Brasil? Como se chamava o meu pai?
Pois, a memória. A memória é a punição dos lúcidos. Levanta o auscultador,
Muita boa tarde. Viram aí, na redacção, o empregado do arquivo? Desliga. Sorri, feliz como um menino, para o sorriso cínico. Pusilânimes. Rodopia três vezes sobre si próprio. A realidade morde-me os sentidos, Brigitte. Sei, eu sei, continuo a dizer palavras dos outros. É esse, afinal, Brigitte, o ofício dos jornalistas. Segundo o ministro, acrescentou o ministro... Pusilânimes! Querem reerguer o mundo com a suave mentira alheia.
Um dia roubaram-lhe por completo a identidade, o ofício. Privado do silêncio dos seus rebanhos para guardar, o homem emudeceu bruscamente. Sentia-se excluído, devoluto, um rosto anónimo sem a mortalha do envelope perdido nas pesadas gavetas.
Hoje, os jornais, disse o director ao conselho de redacção, não carecem de biblioteca. Nem de arquivo. É um desperdício de espaço, não acham?