quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Veloz primavera

No sonho dos gatos

existe um eterno pássaro

colorido

e uma árvore mais alta

do que o latir dos cães



Agora a andorinha

rente ao chão

veloz primavera

nos olhos do gato

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Bestiário para as crianças

Toupeira
Um bicho verdadeiramente apaixonado
pela intimidade da terra.





Vespa
Abelha que não aprendeu a ser doce.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Se te disser o meu nome


Estás a olhar para mim, eu sei. E já descobriste uma nuvem a sair do meu mundo, como se as nuvens fossem o suave fumo da casa dos sonhos. Não é meu propósito orientar a tua forma de ver. De me veres em silêncio. A cores. Agora fixas os meus olhos. Não. Antes da descoberta do fumo dos meus sonhos, tu passaste por aí: foi isso, a tristeza dos meus olhos, que te fez desviar de repente o olhar.
Se te disser o meu nome, irás olhar-me de outra maneira. Acredita, o nome torna-me menina. E eu quero ser uma menina. Enquanto ouvias, eu vi, reparaste num breve sorriso. Este sorriso, este doce sorriso como uma tangerina, prende-te. E agora, sim, observas-me, sem receio, pelos lábios. Sou uma menina, tenho nome,uma casa inventada na cabeça. Pode parecer estranho, mas eu estou dentro da
casa, da casa dos sonhos: fiz uma fogueira com rama de alecrim e giestas, corri para a janela. E aqui estou, sempre aqui estive, à janela. A olhar para ti.

(desenho: Elsa Navarro)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Paciência vegetal



A natureza cultiva a paciência. Roubaram-lhe o chão, a terra, e ela jamais renuncia (as vitórias do homem são transitórias). Devagar, ilude a mortalha de pedra, amarinha na parede, aparece à janela e bebe o dia. Só o cão, por certo, como se chama o cão?, compreenderá a sereníssima paciência vegetal. O cão. Que fareja este cão de caça, longe da serra, longe dos rastos orvalhados da manhã.



(Foto de Augusto Baptista)

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Tráfico

na alfândega da fé

deus vasculha a cabeça,

o silêncio, os bolsos

dos fiéis


só assim escusa a imoral simonia.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Água



Neste momento, no preciso momento em que lês a imagem, apetece-me segurar o puxador (já o descobriste?) e sacudir a palavra. Assim com quem trespassa o aguaceiro e, antes de recolher a casa, enxota a água do guarda-chuva.



(Foto de Augusto Baptista)


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Palestina


Vieram os soldados

mataram o meu pai.

a mãe ficou amortalhada

nos escombros da casa.

Disse o meu irmão, os avós

dos nossos avós

eram filhos de sitiados: e partiu

em silêncio com a morte rente à pele.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

O bosque silencioso




Quantas palavras libertou esta máquina de escrever [máquina de escrever é uma expressão bonita, não desvirtua o acto secreto da escrita]? Agora é silêncio, exército atascado na lama, imagem aérea de bosque coberto de fuligem. Mas há uma centelha de vida na pequena luz que afaga as palavras queimadas.



(Foto de Augusto Baptista)



Quando noite se grafava noute, José do Telhado era um homem temido, Camilo escrevia romances sem corrector automático, Ana Plácido bordava a acácia do Jorge, em ponto cruz, num pano de linho. A Palavra noute procura abrigo, desliza como água fresca na tua garganta. Noite é o medo, é o medo a fugir dos teus lábios.

(Foto de Augusto Baptista)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Pátria



Quem pendura a pátria na parede da rua (em terra estranha), por certo mereceria ser feliz.

(Foto de Augusto Baptista)

A nossa casa



Adivinham-se as divisões. Os azulejos da cozinha; o rasto da chaminé a trepar na parede, o abrigo das traves de carvalho. Quando se tornou projecto em tamanho real, alguém escreveu povo na parede da sala de jantar. Sim, ali era a sala. Havia uma mesa, quatro cadeiras, uma fotografia do casamento na solidão da parede. Ao domingo, sobre a mesa, a jarra de margaridas tinha por companhia O Primeiro de Janeiro: a infindável aventura do Príncipe Valente, os bonecos do Sam Payo a acirrar a tristeza, partia o Niassa rumo às colónias com mais um carregamento de melancólica bravura. Do pequeno jardim em frente, quando a casa era casa, irrompeu a voz, “Mãe, mãe, ó mãe… o menino já sabe andar!”


(Foto de Augusto Baptista)