quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

A Pérola e o Mário


O filho de Maria e de David escreve livros. A rebeldia da palavra persegue-o. Porque os livros, como disse Federico Garcia Lorca, espevitam a revolta, abrem caminhos à justiça, aos sonhos. Qual foi o grande desejo de Kino quando descobriu a pérola? Kino, humilde pescador de ostras, tinha uma fortuna entre as mãos, a pérola poderia mudar a sua vida. Perante o olhar de espanto dos vizinhos, tão pobres como ele, Kino disse orgulhoso: «O meu filho irá à escola».

«O meu filho saberá ler e abrirá livros, o meu filho escreverá, o meu filho saberá escrever. (…) E essas coisas tornar-nos-ão livres, porque ele terá conhecimentos, saberá. Através dele, teremos conhecimento também».

E, na pérola, Kino via-se já agachado na cabana, ao pé do lume, com a Joana a seu lado, enquanto Coyotito lia um enorme livro».

Maria, «uma pobre jornaleira que nunca frequentou a escola», também um dia, a olhar com ternura para filho, disse: O meu filho irá escola. Saberá ler e escrever. O meu filho terá conhecimentos, e será livre e nós também seremos livres. O menino, ao colo da mãe, sorriu. Não terá percebido o fogo daquelas palavras estranhas, mas as mães falam com os olhos ou com a polpa dos dedos a deslizar no nosso rosto. Quando David chegou a casa, Maria escondeu a pérola, o sonho do filho ser um livre com palavra.

O filho de Maria do Grilo e de David, um operário que conhecia as árvores pelo coração, escreve livros. É um homem livre. E feliz nesse ofício de partilhar a palavra, como quem partilha o pão e a dignidade. Partilhar a palavra, muitas vezes, é um gesto de coragem. Mas o filho Maria e David, como o Kino de Steinbeck, não cede a adversidades. Nunca cedeu, mesmo no Tempo do Silêncio, foi homem livre com palavra. A mesma palavra libertadora que espalha, que partilha, neste tempo nosso de incerteza e de recuo histórico.

Palavra libertadora é pois o que vão encontrar em Canto(s) nas Margens, o último livro do filho de Maria e David. «Padre sem ofício pastoral oficial desde Março de 1973». Trinta anos de Abril não foram ainda suficientes para os senhores do templo levantar o «castigo» ao padre Mário da Lixa, que foi assim que o ouvi nomear, por velho comunista de Vieira do Minho, quando eu era criança. E é assim hoje que, fraternamente, o trato.

O Mário nada teme, nada lhe falta porque nada tem. É padre do Povo dos pobres, «ateu dos deuses todos/ que se alimentam de gente», da miséria, da ignorância. Não «troca valores por interesses». Discípulo de Jesus: «vive no meio do mundo/ não tem templos nem tem deuses», caminha «com o Povo mais sofrido».

Quando o filho de Maria e David se tornou homem, disse à mãe: «O mundo dos homens tem de ser mudado. É preciso derrubar a velha pirâmide».

sábado, 26 de janeiro de 2008

Casa


Imagem brusca: o homem assoma à porta da casa inabitada. Volta-se para o interior (só lhe vejo a mão). O homem fala com o devoluto: como se para lá da porta houvesse uma plateia de fantasmas, ou personagens que perderam a voz, o rosto, luz, a ternura. O homem irrompe da casa. Agora o homem perante a luz. É um africano, excluído de rua, por certo, e de súbito se vê dono da casa. A mão presa na porta sustém o corpo, impreciso na posição, como se o homem fosse menino a aprender os gestos primordiais. Estará bêbado, dirige a fala a transeuntes acossados (serão eles também espectros?). Ninguém o ouve, ninguém repara na humilde personagem. Fecha a porta, silencia devagar o devoluto. Banzo. Despede-se da propriedade, banzo. Na porfia da noite, o derradeiro caminho da morte.

(Foto de Augusto Baptista)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Bestiário para as crianças

Urubu

Dos tempos de escola
só se lembra de uma vogal.





Urso

Escorre mel por esta palavra.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Palavra rasurada
















Uma palavra de raiz e húmus. Cresce pela copa. Generosa se repete, e só depois o delgado tronco (impreciso fio de água) desce a parede, procura o murmúrio da terra. A palavra faz-se floresta.


(Foto de Augusto Baptista)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Voz, as vozes

Ouve

este rio é um cardume

de vozes

vozes espavoridas na água

na limpidez da água

e a tua voz

inerme como um lírio

junta-se a todas

as vozes deste rio

Ouve

ouve devagar as vozes:

saberás então o nome

o seu estranho nome

Ele é homem, rio Homem

devora, uiva, engana

como os homens

até se perder no abismo

Mas às vezes é doce como a água


Ouve

o leito de pedras afeiçoadas

vai amortalhar a tua morte

ele é o Homem!

E um dia

ouve

e um dia ele afoga a aldeia

os ódios e os sonhos

afoga as casas

e o amargo cheiro do gado

Ninguém

e ninguém dirá o teu nome!

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

A fome apátrida das aves

A fome apátrida das aves deixou marca nos dióspiros. O meu filho dorme, o repouso cicatriza a ferida. Brévia, observo a brévia submersa na manhã. Abro a navalha de enxertia: de um só golpe, degolo o cavalo. Já não tenho quarenta anos, digo. A palavra, como a nossa vida, é inexorável substância de aluvião.



(in Brévia, Hidra Editores, 2005)

domingo, 13 de janeiro de 2008

Paixão














Quando chega a Primavera, as folhas da trepadeira iniciam o ofício de cerzir este amor de Outono e Inverno. Um dia, a trepadeira enamorada (parece uma glicínia, não é) engole para sempre as palavras – enxuga a paixão do muro.



(Foto de Augusto Baptista)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Bestiário para as crianças

Bicho-de-conta



Se o ouvires com os olhos
conta-te pequeninas histórias

na palma da mão
ele fará de conta que é uma bola
e emudece subitamente.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Cardume de peixes cegos

Uma simples imagem abala o lago profundo da memória. De tão profundo, a água do lago bebe a limpidez. Torna-se sombra, impenetrável sombra. Olhas, olhas e nada vês. E a tua memória está inçada de gestos, folhas de plátanos na migração do Outono, rostos de mulher embargados dos olhos. Uma simples imagem, de repente, te ilumina: e da matéria de aluvião, sedimentada nas profundezas, desprendem-se algumas palavras,

Feliz ainda quem

Pode encontrar a porta

Chorar diante dela.

Cardume de peixes cegos, os versos de Guillevic, sobe devagar à superfície.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Evocação do triste soldado

Os soldados quando chegavam à aldeia, em gozo de férias (terrível eufemismo) antes da viagem a África, faziam um número de magia. Tiravam o projéctil de uma bala e vertiam a pólvora sobre a laje, no largo do povo. Depois riscavam um fósforo e, extinta a chama voraz, despontava a palavra. Uma palavra negra, agarrada à pedra como gravura rupestre, a cheirar ainda a pólvora. Palavra breve. Podia ser o nome do triste soldado se o seu nome fosse exíguo, amor (consome pouca pólvora, não espevita dúvidas ortográficas), mãe ou sol. A palavra descobria o húmus da escrita no coração da pedra e permanecia viçosa, longos dias - a rescender a morte.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Evocação do cantoneiro

Nunca vi ninguém a ler o código de estrada à sombra dos vidoeiros, na berma de via antiga (zelada por cantoneiro que da tosquia dos cedros fazia esculturas). O código de estrada está cheio de mistério. É um livro nebuloso. Da biografia do autor apenas o nome se conhece. O autor do livro do código de estrada, penso às vezes, deve ser pseudónimo de poeta obscuro que recusa entrevistas, evita partilhar a vida com a turba imensa de leitores. O livro do código de estrada, penso às vezes, tem a grandeza de bíblia universal de um culto clandestino: toda a gente o lê, ninguém (concluída a leitura anotada) o exibe na estante. Também eu o li, sem grande proveito, até ao fim. Para escorraçar o enfado, fiz da leitura acto predatório: caçar uma ganchada de gralhas e erros ortográficos, numa octogésima sétima edição revista e actualizada, é troféu extraordinário! Do livro do código de estrada lembro-me do brilho do papel (enjeitava anotações a lápis), e do agente regulador de trânsito. Personagem que do gesto fez palavra poderosa, mas entrou em contramão na história. Idêntico desfecho teve o cantoneiro, que plantava hidranjas e alecrim na borda da estrada – e, com arte, afligia a liberdade dos cedros.