terça-feira, 27 de novembro de 2007

Provérbios quase esquecidos


em terra de cegos

o amor é táctil

*
um burro carregado de lírios

é um poema de Lorca.

*

quem tem telhados de vidro

adormece a contar estrelas

*

Deus fala direito por línguas mortas

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Bestiário para as crianças

Zebra

Conheço a história de uma zebra que, um dia, cansada da sua roupa às riscas: deitou-se no pântano. E de lá saiu, pouco depois, com uma cor só. A manada parou, a remoer o espanto – e expulsou-a.

Ao cair da noite, dizia a velha leoa aos filhotes: «Queria uma zebra para o nosso jantar… vejam só!, cacei este bicho desconhecido!»



Elefante

No tempo em que os animais falavam, um elefante disse aos companheiros: ertsevlis rolf amu res ed avatsog *. Os outros ergueram a tromba na direcção do céu, que é a forma destes animais exprimirem graficamente o espanto. Furioso, o chefe do grupo soltou um grito, imenso, parecia uma tempestade – a partir desse dia, barrito passou a língua oficial dos elefantes.

* Lê da direita para a esquerda, descobres um verso de uma língua morta.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Bestiário para as crianças

Urubu

Dos tempos de escola
só se lembra de uma vogal.



Urso

Escorre mel por esta palavra.


Veado

Pequena árvore andante.

sábado, 17 de novembro de 2007

A morte sobre a manhã




















Sobre a manhã, «ouviram um ladrar anormal dos cães». Descem ao quintal, acham refúgio num palheiro próximo. Minutos volvidos, os primeiros silvos de balas trespassam o frio de Dezembro na aldeia de Cambedo, perto de Chaves. O cerco. Ténues esperanças restam aos guerrilheiros antifranquistas. Homens acossados, conhecedores dos montes e de escusos atalhos, não renegam a luta. Resistem. Um dia, uma noite, até à tardinha do dia seguinte.
Os outros têm morteiros e bombas incendiárias, são muitos. Eles são apenas dois. O terceiro guerrilheiro foi abatido sobre a manhã – não quis, num gesto de dignidade, comprometer quem lhe havia dado guarida. Chamava-se Juan Salgado, gaiteiro na juventude, contrabandista. Guerrilheiro porque tinha arte de atirador (“onde punha os olhos metia a bala”) e, do outro lado da raia seca, esperava-o o cárcere. Ou, o mais provável, uma bala para lhe esfacelar a cabeça. Destino, afinal, reservado a quem afrontou o sanguinário caudilho.
Sobre a manhã, Juan fura o cerco, abre caminho com rajadas em forma de leque. O destino é fronteira, ali a escassos quilómetros. Dessa vez, porém, a montaria aos rojos envolve forças dos dois países. Na linha imaginária que divide nacionalidades, um cordão de carabineiros acolhe o compatriota desavindo com a palavra das armas. Ferido, volve ao refúgio de Cambedo, em busca dos camaradas. Um cabo da GNR trava-lhe a caminhada sôfrega, dolorida. “Foi morto pelas costas».
No estertor do lendário homem de guerrilha (“malfeitor”, “bandoleiro”, segundo as autoridades salazaristas), já os morteiros espalham o terror na aldeia raiana: ainda sobre a manhã, o povo, assustado, foge para a parte alta dão lugar. Ficam dois homens, dois homens apenas. Demétrio Garcia Alvarez (na foto) e Bernardino Garcia. A fenda numa parede, provocada pelo bombardeamento, permite-lhes entrar em casa amiga. Na adega, encurralados, rebatem os assaltantes. Adiam a morte.
Agora, manhã limpa, chega a trégua breve. As “forças públicas” iniciam a revista às casas de Manuel Bárcia e de Albertina Tiago. É nesta última que os guerrilheiros se escondem, atrás do velho lagar. Dois soldados da GNR são mortos, fica ferido um agente da Pide. Intensifica-se o tiroteio até aos primeiros assomos de escuridão. A noite, a noite ansiada por Demétrio e Garcia para tentarem a fuga. Em vão. As “forças públicas” incendeiam palheiros: o clarão das chamas depressa os demove da aventura.
Pela noite e sobre a manhã do dia seguinte falam ainda as armas. “Á tardinha”, lembra Aurora Gonçalves, Demétrio, sem munições. rende-se. Ou talvez fosse insuportável estar vivo ao lado do companheiro morto. Bernardino Garcia, ex-capitão do exército leal à Frente Popular, guardou a última bala para si. Preferiu a morte à tortura, à terrível angústia de ser forçado a contar segredos da guerrilha. A versão oficial é outra. Garcia “foi abatido pelas forças públicas”. E o cadáver exibido como trofeu de caça... que todos observem, toquem, o animal feroz. Na altura do massacre, Carlos Lopes tinha sete anos. Hoje ainda se lembra de Garcia, estendido, regelado, no cemitério de Cambedo. “Era um homem forte”. Mas o que guarda na memória, com nitidez, é a imagem das botas do guerrilheiro: “Um luxo, de cano alto, a bem dizer novas!»
Ary Pires era o barbeiro da guerrilha. “Cheguei a fazer a barba mais de uma dúzia deles”. No monte, duas vezes por semana: à quarta e ao domingo. “Pagavam-me bem”. Na madrugada do cerco, Ary é detido na fronteira, com contrabando, pelos guardas espanhóis. Trazem-no às autoridades portuguesas. Próximo do povoado, Ary ouve os primeiros tiros. Depressa adivinha a tragédia. “Vinha o dia a romper”, por entre os arbustos vislumbra Juan já em fuga, na direcção da fronteira. “Foi meter-se na boca do lobo, e eu nada podia fazer”. Vê pela última vez o guerrilheiro, agora já ferido, no regresso a Cambedo: “Andava uns metros, voltava-se de repente e despejava uma rajada”. Ary aponta como o dedo para o fundo do pinhal, “mataram-no ali”. Pelas costas? “Isso não sei. A GNR o ali o Juan, tenho a certeza». Antes do assalto final, os guerrilheiros «andavam tranquilos da vida: trabalhavam para os vizinhos, comiam e bebiam nas adegas do povo. Mas a vida é assim”.
O cerco a Cambedo, no dia 20 de Dezembro de 1946, marca o fim da guerrilha antifranquista, com base de apoio na raia portuguesa. Um erro político dos maquis conjugado com a acção da Pide deram o golpe final nos rebeldes. Em Setembro daquele ano, o grupo de Juan Salgado ajusta contas com o cacique Sousa Pinto, da aldeia de Negrões, Montalegre. Este acto de retaliação causa três mortes. Sousa Pinto havia denunciado um refugiado, que hospedou em sua casa:. devolvido às autoridades espanholas, foi fuzilado mal transpôs a fronteira.
Demétrio Garcia Alvarez, perante os juízes do Tribunal Militar do Porto, reconhece o erro do assalto em Negrões, atribuído ao grupo de Juan. O acto, no entanto, carecia de autorização da Federação de Guerrilhas galegas. Após os acontecimentos de Negrões, as autoridades salazaristas reforçam a campanha contra os “bandoleiros armados”. Era, pois, altura de alarmar as populações do “perigo” que corriam ao apoiar essa gente. Para reforçar a ideia de terror, a Pide e agentes espanhóis encenam um assalto à carreira Braga-Chaves, no último dia de Outubro de 1946. Não houve mortes, mas os passageiros vêem-se desapossados dos seus bens. No dia seguinte, os jornais falam de mais um atentado da “matilha do Juan”.
Estava criado o ambiente para o golpe na aldeia do Cambedo, nas vésperas do Natal. Desmantelada a guerrilha, dezenas de portugueses são condenados pelo crime de serem solidários. As marcas da brutalidade do assalto ainda são visíveis na aldeia raiana. Uma das casas derrubadas a tiro de morteiro continua em ruínas: para que ninguém esqueça a barbárie fascista. Ao lado, sobre uma varanda de madeira, um solitário cravo vermelho debruça-se na ruína. Imagem de liberdade, numa manhã de Dezembro – distante, tão distante do «ladrar anormal dos cães».

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Bestiário para as crianças

Estorninho



Atravessa o Outono
veloz e luzidio
como um fruto ferido de mágoa

em bando, sempre em bando
o negro estorninho.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O rapaz do lírio

Senta-se na sombra dos choupos. As raparigas diluem Agosto, ardente, no rio. O rapaz sobe à coroa do amieiro. Tudo cessa para o ver, destemido, a declinar a cabeça contra o peito, como ave em busca do sono, a estender os braços, retesados, cegos: a todo o instante, o golpe preciso, exacto, na limpidez da água. O homem do saco de cabedal leva o olhar ao encontro do mergulhador. Indeciso, agora indeciso, no ramo mais alto, adia o gesto, o arrojo, a glória efémera. Uma brisa suave fez bulir as folhas, desinquieta o leve voo das libelinhas, penteia a verdura dos milheirais em redor. O rapaz recolhe devagar os braços, levanta a cabeça. Desce. Sem olhar o rio, desce. O seu silêncio é uma arma branca, gume afiado, degola folhas, os ramos tenros do amieiro.
As raparigas voltam à água, ao riso, desinteressadas da secreta amargura do rapaz. Do mergulhador enamorado, que desaparece por entre as canas do milho, a roupa debaixo do braço; momentos depois regressa vestido. Parte. Nenhuma, e nenhuma rapariga o segue pelos olhos. O homem abre o livro. Adormece, pouco depois, na sombra húmida dos choupos.



O homem do saco de cabedal assiste aos preparativos da festa, no largo. Em Agosto, no mais remoto lugarejo há sempre bocas de altifalantes na copa de árvore inatingível. Ou, se a igreja tiver torre, daí desponta a música. Veio a noite e a noite trouxe a dança. O mergulhador enamorado aproxima-se, traz um lírio na mão, um sorriso nos lábios. Da porta do café, o homem perscruta-lhe o movimento – o passo tímido, coração inquieto. A dança acaba, outra dança se inicia. E o rapaz caminha, caminha por dentro da alegria dos outros. Que paixão esconde atrás do lírio? Detém-se. Olha ao redor, como se fosse um estranho. O homem do saco de cabedal entra no barulho do café, ilude o labirinto de homens que amarfanha o balcão, pede aguardente: um cálice de aguardente, por favor. A mulher detém-se. O seu espanto parece eterno, o homem repete, aguardente, por favor. E estende a nota, não o fossem pensar um louco sem dinheiro. Enche o cálice,
Café?
Obrigado,a aguardente basta.
Enquanto recolhe o troco, diz: Agosto é o primeiro mês do Inverno. Boa noite. Abandona o balcão e o olhar violento dos homens.
De novo no largo, agora mais amplo, despovoado. Olha o relógio, passa da meia-noite, a temível fronteira que afugenta os rurais. Os do café começam a sair, devagar a noite passaja a dignidade da acalmia.
O homem irresoluto, no meio do largo. Regressa ao café, a televisão adormecida; a mulher varre saquetas de açúcar vazias, pontas de cigarro, tampas de refrigerantes que, na curta viagem, riscam o silêncio. A mulher suspende o gesto, encosta a vassoura ao peito. O meu avô também dizia que o Inverno rompe no primeiro dia de Agosto. A sabedoria dos velhos, pensava, só a eles pertencia. O homem do saco de cabedal olha-a (de repente se fez bonita, como a mulher de uma canção da sua juventude). Ela pousa a vassoura, enche dois cálices de aguardente. Bebem de um trago só.
Que secreta paixão esconde o rapaz atrás do lírio?
O homem ingressa na noite, atravessa o largo, depois uma ruela estreita, calceta irregular, sob um arco de latidos. No desfecho da aldeia, no ponto mais escuro da noite, acende um cigarro.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Água do mar

Leva-me a Busteliberne?
O homem do carro de praça espanta-se. Vistoria, em silêncio, o imprevisto cliente. Barba a monte, um pouco abandonado no vestir, o saco. Que ocultará o vadio no saco? Encostado ao automóvel, na sombra do plátano, hesita. O passageiro imprevisto ilude a impaciência. Abre o saco, demora a achar o tabaco, retira e a seguir devolve o conteúdo: livros, um caderno de capa dura, um lápis, Viarco nº 2, afiado... Então, Busteliberne!, diz, bem alto, para o colega (dormita no outro carro de praça) ouvir. Abre a porta, ocupa o lugar. O homem do saco de cabedal circunda o automóvel, senta-se ao lado do motorista.
A estrada civilizada, pouco demorou, fica para trás. Agora é de terra batida, rasgões evidentes talhados pela cegueira das chuvas. Lenta, lenta e penosa a marcha no coração da serra. Das bermas, uma multidão de giestas curva-se em vénia florida. Quatro ou cinco quilómetros galgados, nem uma palavra. Aqui e além, o motorista tosse, como se afinasse a garganta para o arremesso da pergunta. O homem do saco olha em frente, às vezes vira o rosto e segue a imagem pela janela do seu lado, como caçador, arma apontada, a riscar trajectória de perdiz. Ele sabe, a pergunta surgirá antes do olhar atingir a aldeia,
Se quiser, pode fumar.
Ei-lo a arrotear o silêncio. O homem do saco de cabedal, por certo, vai agradecer,
Obrigado.
Caiu na cilada. A pergunta vem a seguir, um humilde vai desculpar-me no início. Vai desculpar-me o atrevimento: alguma vez esteve em Busteliberne? O passageiro olha-o com um sorriso. Não, nunca estive. Do saco retira o tabaco; o outro desce, enquanto fala, é uma aldeia quase morta, o vidro da janela. Só a Deus falta a companhia de dois ou três velhos... e declina de vez! O homem do saco diz, o topónimo é bonito. Como? Antes de entrar na vila, vi o nome da aldeia numa placa. E subitamente Busteliberne é a minha terra. Como se, há muitos anos, eu tivesse partido: sem virar o rosto, no olhar derradeiro. Não o entendo, diz o motorista. Passagem bíblica, meu amigo.

Ainda estamos longe?
O homem do carro de praça emudece. Mesmo ao lado tem um desconhecido, barba a monte, desleixado no vestir, o saco, que esconde o saco além dos livros? Na aldeia havia três ou quatro velhos, até os distinguia pelo nome, mas já morreram, e se vivos fossem demasiado gastos seriam para o ajudar a deter o gandulo… a estrada, apertada, a estrada não permite brusca inversão de marcha,
A minha única arma é um lápis afiado.
Vai desculpar-me... é que o senhor parece…
Quer um cigarro dos meus?
A aldeia, povo breve, em frente dos dois homens. Pare. Por favor, pare aqui. Quero regressar pelos meus próprios pés! Quanto lhe devo?
Paga. Estende mão amistosa ao motorista.







Crepita a água pelos regos. Água, muita água, como se fosse o perfeito idioma do abandono. O homem suspende o gesto, relê: perfeito idioma. Rasura o que acaba de ler. Escreve, como se fosse voz cristalina do abandono. Pela escrita suaviza o infortúnio do mundo, pensa o homem do saco. E quem sou eu, silencioso cronista, para lhe alarmar o sonho? Ele fecha o caderno de capa dura, acomoda-o no saco de cabedal, volta-se na direcção da serra, à procura do carro de aluguer. Nada vê, nem o automóvel, nem a nuvem de poeira que por certo levantaria. Um absoluto silêncio apenas, que a voz derradeira da água não apaga – nunca saberá diluir.
O motorista aproxima-se. Desgastado. Como se tivesse esquecido a arte de andarilho por caminhos velhos. Senhor, peço desculpa. Não o podia deixar sozinho: quem o levaria à vila? Não, não pense mal de mim, a viagem de regresso é por minha conta. O homem do saco de cabedal diz,
Já não há lobos na serra.
Nem almas nesta aldeia, senhor. O último habitante morreu no Inverno do ano que passou, foi encontrado por caçadores, na soleira da porta, hirto pela geada.
Afinal, a Deus nada falta.
Sim, não contei a verdade toda… para o apartar do fim do mundo.
Como se chamava esse homem que o frio soube cingir?
Era uma mulher, senhor. Chamava-se Ludovina. A todos os que por aqui passassem, ela fazia um pedido: se um dia voltassem, lhe trouxessem água do mar. Um garrafão de água do mar!

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Os homens de talabarte


















No tempo dos lírios, eles sobem aos montes, levam bornal, em bandoleira, cheio de laranjas e hortelã. Quando o peixe se afoita na correnteza das águas, descem às terras aluviais rente ao rio. Um lugar de gente feliz, disseram: caminha por veredas antigas, limpas pelo melhor buril que é o uso. No defeso de passear pelos montes e prender giesta branca no talabarte, e não sendo época da desova dos barbos, é Inverno: os homens andam em redor do povo. Durante os rigores do estio porfiam a mesma navegação sob a alva. Repousam, à tarde, debaixo das figueiras. E quem sabe ler, lê como se falasse sozinho. Os que não ajuntam o rebanho das letras ouvem, ao lado das crianças, enternecidos, o mistério dos livros profanos. Terminada a leitura, já o sol se afigura manso, passam pela fonte. Bebem, as mãos em concha alaga-os de frescura. No lugar onde os homens andam a pé, o último sacerdote sublinhou fiel atormentado num incunábulo, interdito a leigos, e desatou a correr para o coração dos montes. Uma picada de víbora, não era tempo de açucenas, trava-lhe a jornada que parecia sem fim. De boa mente, os homens espremeram meia laranja azeda na zona da mordedura, por via da ruindade não alastrar à alma, e deram sepultura ao corpo. Durante a noite, emparedam as portas do templo com tijolo burro – a grande e a lateral, mais económica de uma só folha grossa de carvalho francês. E abjuram o conserto do vidro que o derradeiro eclesiástico estilhaçara num imoderado arremesso de pedras às andorinhas. Aferiam no santo beiral o sítio justo para o ninho, mas a tempestade de pedras, silvavam como cobra sitiada, irrompeu desmedida: as longínquas aves alaram. No ano seguinte, porém, depressa a fresta no vitral foi convite a habitar o sagrado.
Por entre as neblinas primeiras de Outono, despediram-se de novo da igreja, num voo silencioso e comovido. Disseram, “as andorinhas quando voam rente ao céu, e fazem-no nos dias luminosos, incorporam as almas”. Rompeu a Primavera na frágil brancura das cerejeiras, o bando também e havia crescido: barro e mais lama desaguam na solidão do templo. Laborioso movimento, leve e expedito, maravilhava os homens: viam agora as andorinhas como se fossem a alma alada e veloz de antepassados. Almas enamoradas, acasalavam para subtrair ao limbo outras almas à deriva, longe da luz, longe do mundo dos vivos. A partir de certa altura, um dia por semana, a caminhada perecia no adro. Houve quem exigisse a reabertura das portas, no estado em que se achava a igreja impiedade seria chamar-lhe Casa de Deus. Que é alvura, que é a Luz. E esse argumento viaja na carta, chega à mão desapaixonada do secretário do bispo, no distante paço episcopal. Os portadores da epístola, dois homens maduros, gastaram sete dias, em passo ledo e harmonioso, até topar o destino. E três dias aguardaram, a água e silêncio, sem dormir, pela graça do prelado, que pressentiam feliz. Recebeu-os sentado, escusou estender a mão, não quis levantar os olhos; escrevia numa folha timbrada, resguarda o escrito no envelope onde os homens vêem tombar uma roxa lágrima de lacre – e logo o anel lhe dá forma circular, marca pessoal.
Quando o secretário o avisou da partida dos romeiros, levantou-se e devagar, engenho de bispo a conferir solenidade à marcha, abeira-se da janela. Ainda vê, no fundo da rua, os talabartes floridos. Espanta-se! A elegância, ritmo, a leveza dos caminhantes… “Povo selvagem”, comenta para si, no momento em que os perde da vista.

A um dos profanos leitores estivais cabe a missão de revelar a resposta. Estava escrito o seguinte na folha timbrada: “Quem me ama, guardará as minhas palavras”. Nada mais o bispo grafou além da breve frase alheia, por isso cativa pelas aspas. De que livro havia emigrado o pequeno bando de vocábulos? Dos evangelhos, talvez, mas seria empresa desprezível, e deveras imóvel, passar a pente ralo os evangelhos à cata da palavra e do seu contexto. E se a citação fora colhida em livro apócrifo? Os livros sagrados escassíssimo interesse atiçam no lugar onde as pessoas andam a pé. A dúvida terá o mesmo número de devotos. Expeditos, acham resposta para tudo. Respostas quase sempre inverosímeis mas o certo é que a dúvida foge como animal bravio. O leitor da missiva, ele próprio, como se fosse experiente arboricultor da língua, desrama a mensagem. “O bispo diz que a palavra do Senhor está na igreja. É preciso libertá-la, dar-lhe de beber a luz: pô-la como um selo no coração”.
Um a um, com desvelo de artefacto da dinastia Ming, apearam o tijolo burro que sequestrava o verbo divino. Quando a luz diurna, morna mão macia, afagou de novo as portas: a madeira retraiu-se da carícia e arremessa um estalido, a lembrar gelo pisado sobre a manhã de Janeiro, e se levanta nuvem de pó, e ouve-se a fechadura a cair estrepitosa, desamparada, no lajedo da soleira, e pouco depois o tilintar de pregos e outras esquírolas de metal. Vagarosa, a porta grande, pó, finíssimo pó cor de chocolate, suja a claridade. Melancolia corrosiva, disseram, é a ausência de luz. Explicar as coisas pela metáfora parece ser o melhor caminho na terra onde as pessoas andam a pé. Juntos com a luz limpa, os homens reentram no templo abandonado: a brusca visão dos santos, alvejados pela claridade, assombra-os! Para muitos era a primeira visita à Igreja, e de igual modo esses, falhos da palavra de Deus, mostram sentida inquietação. Os santos, disseram, perdem o rosto no instante em que renegam o martírio. Esta observação, como se tivera fogo, impele a marcha – depressa o adro e a igreja quedam vazios de gente.
Os homens no tempo da desova dos barbos não usavam os talabartes. Quando voltaram do rio, trouxeram um seixo afeiçoado e uma braçada de perrexil. E deram o seixo a lamber a vaca prenha, depois o enterraram no vergel mais árido do lugar: assim haverá água na fonte e nos campos, têm as chuvas os seus tempos plausíveis. A salsa brava mergulha na água com um fio de azeite cru, numa caldeira de cobre, e havia de ferver três dias e três noites. Nas quatro noites seguintes ficaria em repouso, coberta por manta de burel. A partir do sétimo dia, os mais velhos do lugar onde as pessoas andam a pé, se a fadiga lhes tolhia a marcha, beberiam uma concha desse chá e o enfado abalava. Os rios, disseram, perpétuos viageiros desprezam a memória porque imunizam o ímpeto da juvenilidade. E foi desprovidos de talabartes que os homens volveram à igreja, como se desejassem confirmar o assombro. As andorinhas estavam também de volta aos ninhos, havia-os no tecto, colados aos frescos bíblicos, havia-os nas paredes e no altar. Aí, no altar, surgiam apostos ao rosto dos santos, humanizados pela vida que se gerava nas suas cabeças. As imagens viveram paraíso onde as almas repousam e se multiplicam. E o S. Manuel! Só ao mártir S. Manuel consentiram o rosto, o ninho acomodava-se entre as flechas que trespassam o franciscano morto em Damasco. Para este fenómeno a explicação não surge com a simplicidade habitual no lugar onde as pessoas andam a pé. Ficam inquietos os homens, abandonam apressados a igreja e o frenesi das andorinhas a restaurar os abrigos. Pela tarde, encetam a caminhada: trazem os talabartes, embora seja tempo de defeso das giestas floridas. Como se temessem investida externa, o tijolo burro, desta vez na companhia fiel do cimento, empareda as portas do templo. E assim a penumbra, em silêncio, repasta o martírio do padroeiro dos viandantes da cristandade.
Posto o último tijolo, os homens beberam o chá de perrexil na concha marinha. Antes da andança pelas colinas e os montes, chega um homem, muito gasto da andadura. Ele traz uma carta, e ele próprio, depois de beber uma pouca de água, a lê no adro, sem olhar o auditório, como se falasse sozinho: “Esta igreja só reabrirá ao culto se as andorinhas que a habitam forem descendentes das andorinhas que emudeceram em obediência à palavra de S. Francisco”. Quem ordena tamanha crueldade? Indagam os homens de talabarte. Mas pregador gasto pela digressão, homem do longe, por modo de abreviar a bagagem, só trouxera mesmo aquelas palavras.
Dobra devagar a carta, deixa um gesto desapaixonado na despedida.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Bestiário para as crianças




O rato roeu o o e o m da romã,
e ficou espantado! Um pequeno bicho
nasceu diante dos seus pequeninos olhos
a saltar, a saltitar, a saltarilhar,
a saltarinhar… até descobrir o lago
dos nenúfares